domingo, abril 18, 2010

Sonho


“... Estava em uma região pantanosa e úmida, em uma cidade perto de São Paulo. Lá, ao lado de um lago, cercado por árvores de copas densas e troncos enormes, ficava o teatro de arquitetura inglesa, no qual as peças da cidade eram interpretadas.

Fora convidado para fazer uma ponta em uma peça, pois faltavam atores suficientes para ela e eu dispunha de algum tipo de amizade com um dos diretores.

A peça era uma versão macabra para um dos contos de Machado de Assis, interpretada em um palco parco, com pouca luz mas uma platéia que enchia o salão. Uma platéia silenciosa e de rostos inalterados.

Não havia coxias, ao lado do palco havia uma porta que dava para os bastidores. O camarim nada mais era do que um pequeno quarto úmido, com cadeiras jogadas e cheio de teias de aranha, com uma pequena porta para o banheiro, também de proporções ínfimas com uma fraca luz que vinha da velha lâmpada, pendurada somente pelo fio de eletricidade.

Eu interpretava um juiz velho, que fazia às vezes de advogado, ao tentar persuadir o júri e os espectadores do teatro, sobre a sentença de um demônio que estava no teatro. Eu não conhecia o texto e não interpretei bem em minha primeira noite. Fiz o mesmo papel por três noites. Sempre era noite e o teatro inglês, em seu interior, assumia características de uma velha igreja.

Não sei dizer se estava no século XVIII ou XIX, mas os cavalheiros possuíam cartolas e as damas, longos vestidos. Era sempre a mesma platéia a assistir a apresentação macabra, como se eles não saíssem de suas cadeiras e ficassem lá até o próximo espetáculo.

Na terceira noite de minha atuação, o demônio preso à parede do teatro inglês tomou vida no momento em que estava fazendo sua defesa, em uma atuação bem melhor do que a do meu début, fazendo com que a maioria os espectadores e atores fugissem tomados pelo pavor.

Fui para a porta do teatro, junto com outro ator que me apontava um terceiro que clamava por mais atores, pois a peça tinha que ter um fim. Do lago via surgir figuras completamente estranhas, humanóides. Seus corpos eram marrons como terra, usavam roupas feitas de metal que lembravam partes de armaduras e tinham asas. O velho ator do meu lado me explicava que eram elementais de água e apontava para as árvores de onde saiam da escuridão pessoas mortas, em diferentes estados de decomposição, vestindo mantos brancos, andando lentamente, alguns se arrastando, enquanto o terceiro ator dava graças por ter sido ouvido. Os novos atores que iriam compor o fim da peça estavam presentes.

Dentro do teatro o demônio revirava cadeiras, tomado pela cólera. Estava inconformado por ser um demônio e sua fúria parecia residir no fato de desconhecer motivos para sua existência. Eu, já dentro do teatro, mas não mais trajando a barba falsa, mirava o olhar para o demônio, a fim de aproveitar a pouca luminosidade que entrava pelas enormes janelas do casarão inglês, para poder vê-lo melhor.

O demônio era só um homem...”

segunda-feira, abril 12, 2010

Clarisse


Clarisse olhava as hélices do ventilador do teto, lento. Já não fazia idéia se era mais um sonho ou se estava acordada.

Sua mente estava vazia, como um saco vazio cheio de ar esticando-o, seu corpo pesava naquela cama de lençóis baratos, cujo colchão afundava em seu meio. Havia acordado a mais de uma hora, o ardor em seus braços, que antes a mantinha desperta, agora nada mais era do que uma pequena lembrança de noites primevas. De vez em quando podia acreditar escutar uma versão do rádio de Mother Goose, do Tull.

Clarisse não iria levantar, mesmo ao ouvir o barulho de Cecília ao expurgar o resto de toda a noite passada no vaso sanitário do banheiro branco. Cecília havia sido honesta com ela, nunca lhe prometera nada e sempre havia deixado claro que redenção era algo que não encontraria com ela. Clarisse a olhava vir, nua, com os braços brancos, tão cheios de marcas, mas continuava linda ao descerem as gotas de suor sobre se corpo, que caminhava vacilante em direção à cama.

Colado à janela uma velha capa de Ziggy Stardust, a pequena tv ao lado da radiola, seus pôsteres, seus livros, seus cansaços se espalhavam pelo resto do ambiente. Ouvia Cecília chorar baixo contra o travesseiro enquanto olhava a hélice do ventilador girar cada vez mais lenta. O cheiro dela era uma mistura de suor e canela, seria bem mais doce, não fosse o cheiro que a lembrava do gosto metálico de sangue de seus pequenos furos em seu corpo. Seu choramingar ao travesseiro era doce, uma música distante que ecoava dentro da cabeça de Clarisse.

Não iria dizer nada para Cecília, o silêncio sempre fora suas conversas mais íntimas. Não iria humilhá-la dizendo algo. O olhar ainda para o teto, parado no tempo, regente das lágrimas que também eram suas. Cecília cheirava a canela, estava cansada, mal conseguia manter os olhos abertos. Seu toque era suave. Cecília abraçava-a levemente fazendo com que suas pernas pesassem sobre as de Clarisse, enquanto sua cabeça se acomodava próxima ao seu rosto, sentindo o cheiro de seus cabelos. Quase apagando.
- Humm.. você está tão fria Clarisse.
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