terça-feira, julho 08, 2008

Sessão contos antigos - "A canção da madrugada (asas azuis)"



A trinta anos atrás, quando o mundo ainda era mundo, antes dos muros caírem, antes de esquecermos quem somos, um passarinho azul pousou em meu ombro.
Ele ficou ao meu lado durante três anos, e depois de termos ficado amigos, em uma madrugada clara, com uma bicada forte ele roubou meu olho e saiu voando. Eu ainda podia ver os nervos do meu globo ocular saindo do bico do pássaro que se afastava rapidamente naquela madrugada clara.
Bandido.
O procurei por dez anos, tentando achar o meu olho roubado, tendo como última visão suas asas azuis e os pingos de sangue que caiam como pingos de chuva no chão. Só o encontrei do décimo terceiro ano da minha procura. Meu olho se situava na barriga de um peixe cordial que havia pescado.
Disse-me que o pássaro azul havia morrido logo aos negociar meu olho por um grão de areia do fundo do oceano com ele. Pedi então para que me devolvesse o olho, implorei muito. Mas o peixe cordial se negava a entregá-lo e olhava para mim.
Olhava bem para o meu rosto, para a cavidade ocular exposta e para o tapa-olho que cobria meu olho bom.
Perguntou-me:
- Por que você cobre o olho bom e vez do outro que foi arrancado? Por que andas por ai esse tempo todo como um cego? Poderia viver muito bem sem o outro olho.
Então lê respondi prontamente que havia preservado a visão do outro olho para que ele não visse coisas a mais nem diferentes da do olho roubado. Permaneci cego para que quando finalmente achasse meu outro olho, eles pudessem enxergar o mundo juntos. Imagine um lho que vê o mundo de antigamente e outro que enxerga o mundo de hoje.
Pedi que acabasse com meu sofrimento e me devolvesse o olho roubado. Então o peixe cordial o devolveu e o coloquei novamente no lugar.
Quando abri os dois olhos me arrependi profundamente de ter abandonado minha escuridão.
O mundo não era mais o mundo, não haviam mais ciprestes e pinheiros, apenas cidades de concreto vazias, com uma atmosfera esverdeada e corpos de pessoas caídas no chão claramente em estado de putrefação. Autofalantes proferiam um discurso militar em uma língua estranha e vultos passavam rapidamente entre os becos dos prédios destruídos pela explosão.
Então chorando, voltei meus olhos para o peixe cordial. Queria saber o que tinha acontecido ao meu mundo. Eis que o que via na minha frente não era um peixe, mas sim uma raposa risonha, que dava gargalhadas de minhas lágrimas, me dizendo:
- Esse mundo não é seu, mas era que você procurava seu cego tolo.
Com raiva arranquei meus dois olhos enquanto o sangue escorria pela minha face, rubro, extremamente rubro.
Peguei o peixe cordial e o comi, enquanto ele gritava e pedia piedade. Peguei sua pequena cartola, pus meus olhos no chão e pisei neles com força sentindo o líquido aquoso que ficava dentro deles molhar meus pés calejados. Podia sentir como eles eram gelatinosos e quentes.
Retirei minha roupa ensangüentada, abri mus braços e deixei as penas azuis crescerem. Então com meu bico, comi s resto dos nervos dos olhos espatifados no chão, pegava-os com minhas pequenas patas e comia-os com desespero.
Pus minha cartola e voei cego por entre os ciprestes e os pinheiros...
Voei até pousar cansado em um galho macio, que logo descobri ser o ombro de alguém. Alguém que fiquei amigo em menos de três anos , alguém do qual o sangue eu provei ao bater as asas durante uma madrugada clara e fria, levando em meu bico algo gelatinoso, quente, fibroso, algo que desconheço o que seja agora, mas que estranhamente eu sinto que irá matar essa pessoa que gosto.
Então abro mais minhas asas azuis e vôo rapidamente para longe. Mas não vejo para onde. Nunca vejo.
Sou um pássaro cego afinal.

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Texto antigo (dos idos de 2005), quando o TQO ainda se hospedava no terra.
Saudades de textos antigos... ando revisando alguns

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