Eram dias de chuva aqueles. Ele sabia bem que as chuvas de março não eram de escoar rápido.
Na verdade as chuvas de março enchiam suas galerias e traziam à tona o lixo, que vertia de seus bueiros e se acumulava mais e mais.
Ele era uma cidade grande, de vias expressas, semáforos e asfalto, de ruelas úmidas, com fumaças de cozinhas populares, de becos escuros com pedaços de cachimbo e latas de cola.
Tudo levado e lavado pelas chuvas de março.
Seus parques eram verdes, é verdade, mas mal cuidados e a prefeitura de seu corpo via-se as voltas com escândalos e problemas de engenharia.
Ele não perdia a cerveja da quarta, a noite tem futebol na tv. Não tinha time. Pensava no presente, vida mais-ou-menos. Dia trabalhando, padaria, pão, leite, presunto na volta pra casa. Televisão de um lado, chinelos de outro.
Cerveja fria, na segunda vinham àquelas idéias malucas, pensava que era uma cidade. Era cada pessoa e cada coisa de si-mesmo.
Si-mesmo era algo que lhe escapava. Si-mesmo surgia sempre lá por março, com as chuvas. Transbordava a si-mesmo pelas sarjetas de suas próprias galerias.
Cochilava no velho sofá que herdara dos pais, copo pela metade. Sonho doido. Ele era uma cidade.
As águas a escorrerem pelas ruas naqueles dias de março.