quinta-feira, janeiro 26, 2017

Barcos de papel


O sol se pôs à duas horas. Fumo um cigarro e vejo a fumaça dançar no escuro da varanda.
Lembrei do meu pai, da minha mãe. Não os vejo faz tempo.
Desde que fui para o mar não tive mais notícias. Aprendi a beber cedo. Cedo aprendi que há formas diferentes de se afogar em terra.
De corpo fechado enfrentei as ondas, tubarões e o canto das sereias. Da água salgada que salpica o corpo já escuro, a pele que o sal do mar esfola e coça.
O sol vai embora e o vento noturo traz o cheiro forte do sargaço e da decomposição marítima que é vida também.
Lembrei dos barcos de papel a correrem rua abaixo nos dias de chuva quando criança. Nas mãos ásperas de papai a delicadeza da dobradura simples do barco, como se pelas suas mãos fosse eu também a ser dobrado. Os barcos levados pra longe pela chuva, nunca retornaram.
Eu também nunca retornei.

segunda-feira, janeiro 23, 2017

Buda



Buda viveu na minha rua.
Ao meio dia sentava aos pés de uma árvore que ficava na pracinha do bairro.
Ele nunca pedia nada. Sentado à sombra sorria para quem passasse por perto: criança, velho ou cachorro. Quando garoto, observar aquele senhor foi meu primeiro experimento antropológico.
Como poderia ser tão diferente dos outros humanos. Parecia sentir fome mas não pedia. Comia o que lhe era posto.
Sumia de tempos em tempos, voltava com um pouco mais de carne nos ossos e sentava lá. Atendendo aos apelos de mamãe não chegava perto dele, apenas observava. Deixei um chocolate uma única vez, ele não disse nada pra mim e, para meu alívio, nem pra minha mãe. Talvez não gostasse de chocolate.
Procurava no almanaque, que ficava no escritório de papai, explicação para minhas mais imaginativas suposições sobre aquele senhor da árvore. Vi um desenho de um homem de olhos puxados, gordinho. Dizia que antes ele era bem magrinho e que, depois de ter sentado por muito tempo embaixo de uma árvore, ficou com as orelhas caídas, gordinho e brilhava como o sol.
Esse Buda era diferente. Suas orelhas eram pequenas e estava longe de ser o gordinho da gravura.
Não o encontrei mais quando voltei de umas férias na casa de meus avós. A praça estava limpa, como se ele nunca tivesse existido. Meus pais não se lembravam quando enfim perguntei pelo senhor sentado à sombra da árvore da praça. Os meses que se seguiram não o vi mais.
Fiquei pensando se, enfim, não teria engordado e suas orelhas teriam arriado, mas não encontrei com ninguém assim pela rua. Mas, naqueles anos de minha infância, o sol nunca brilhara tão forte.

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