domingo, julho 05, 2020

Sobre a escrita





É noite. Escrevo e leio. Releio
Olho os livros espalhados pela escrivaninha e passo a folheá-los.
Me deparo com um trecho sublinhado por mim, já a algum tempo, e percebo o quanto ele continua a fazer sentido pra mim.

"Escrevo, sim, para enterrar e honrar os mortos, sobretudo se eu for historiador. Escrevo também para enterrar talvez meu próprio passado, para lembra-lo e, ao mesmo tempo, dele me livrar. Escrevo então para poder viver no presente. Escrevo, enfim, para me inscrever na linha de uma transmissão intergeracional, a despeito de suas falhas e lacunas. Assim como leio os textos dos mortos e honro seus nomes no ato imperfeito de minha leitura, também lanço um sinal ao leitor futuro, que talvez nem venha a existir, mas que minha escritura pressupõe. Lanço um sinal sobre o abismo: sinal de que vivi e de que vou morrer; e peço ao leitor que me enterre, isto é, que não anule totalmente minha existência, mas saiba reconhecer a fragilidade que une sua vida à minha." -Jeanne Marie Gagnebin

Nunca duvidei do porquê sempre escrevi, nem de para quem sempre escrevi.
Escrevo pra você. 


 

sexta-feira, maio 22, 2020

Sobre a lua


É quase como estar apaixonado. O ar falta aos pulmões, por mais que se puxe a respiração, sem saciedade.
É quase como estar apaixonado. A sensação de incerteza, do que vai acontecer, do que pode vir.
Deito e descanso de uma febre que nunca veio, melhorando e piorando nos dias que seguem.
Ela cuida de mim, e eu sei que estou apaixonado, e que disso nunca vou sarar. Ela cuida de mim e eu lhe conto histórias.
Todas as noites leio histórias de terror para ela dormir, pela manhã conto meus sonhos assustadores de cada noite, ao acordar.
Ela devora livros e mais livros, comendo páginas de forma tão insaciável quanto as vezes que puxo o ar, e sei que estou apaixonado.
Ela sai e eu flutuo pelo apartamento, como se estivesse sobre a lua.
Lá fora chove, e mesmo assim faz calor.

sexta-feira, maio 01, 2020

Alucinado som de saxofone

São quase 18 horas de um dia de semana, o sol praticamente inexiste no horizonte que despeja seus últimos tons de vermelho. Não sei que dia é hoje, as vezes perco a conta, os dias agora transcorrem como uma repetição de números e dados da pandemia, crises políticas, receio do futuro e os contatos distantes com as pessoas queridas.

Baixo o som do jornal na tv, onde fala o ministro da saúde. Penso ter ouvido um som de saxofone. Caminho atraído pelo som baixo até a janela do apartamento e, momentos depois o vento vem trazer a melodia inconfundível até meus ouvidos.
Olho casas e prédios ao redor, e não vejo de onde o som vem. Alguém toca, solitário, algum exercício lindo de escalas e depois alguma melodia que se repete de tempos em tempos, como um ritornelo. A rua está em silêncio e fico na janela a escutar, de olhos fechados, a melodia como se esta fosse tocada pra mim. Então a chamo pra escutar ao meu lado e acho engraçado como o seu rosto muda até distinguir no vento o timbre do sax.
Ela sai, pouco tempo depois, e eu fico a escutar, fico a ter vontade de ir na janela e tocar violão, imaginando o som sair aveludado das cordas do violão e das minhas próprias, se juntando a esse som que alucino horas depois de o vento ter terminado de trazer sua última nota.
Pego o violão e ensaio no quarto, cantando baixo quase num sussurro que só eu escuto, me dando conta que consigo até tocar acordes que antes considerava complicados - os quais, antes, costumava tirar as sétimas, oitavas, simplificando horrendamente. Toco para mim e no final nem chego a ir a varanda com vergonha, a despeito desse desejo de me mostrar, do qual tenho ciência e que as vezes ensaio timidamente.
É noite e cai uma garoa fina, já não lembro mais da melodia que tocava o saxofone fantasma no final de tarde potiguar. Coço a barba já grande tomada de diversos fios brancos, tentando lembrar da melodia, mas só identificando os afetos remanescentes em mim.
Ainda chegaria a ouvir aquele som por mais alguns dias, sempre no mesmo horário, aguardando ansiosamente na janela, até o dia em que as novas mortes, as crises políticas e a minha própria convocação, para atuar profissionalmente durante a pandemia, acabassem por me fazer esquecer desse momento efêmero, restando apenas a lembrança muda de um sentimento trazido pelo vento de fim de tarde de outono, entre o equador e trópico de capricórnio.

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