São quase 18 horas de um dia de semana, o sol praticamente
inexiste no horizonte que despeja seus últimos tons de vermelho. Não sei que dia
é hoje, as vezes perco a conta, os dias agora transcorrem como uma repetição de
números e dados da pandemia, crises políticas, receio do futuro e os contatos
distantes com as pessoas queridas.
Baixo o som do jornal na tv, onde fala o ministro da saúde. Penso
ter ouvido um som de saxofone. Caminho atraído pelo som baixo até a janela do
apartamento e, momentos depois o vento vem trazer a melodia inconfundível até
meus ouvidos.
Olho casas e prédios ao redor, e não vejo de onde o som vem.
Alguém toca, solitário, algum exercício lindo de escalas e depois alguma
melodia que se repete de tempos em tempos, como um ritornelo. A rua está em
silêncio e fico na janela a escutar, de olhos fechados, a melodia como se esta
fosse tocada pra mim. Então a chamo pra escutar ao meu lado e acho engraçado
como o seu rosto muda até distinguir no vento o timbre do sax.
Ela sai, pouco tempo depois, e eu fico a escutar, fico a ter
vontade de ir na janela e tocar violão, imaginando o som sair aveludado das
cordas do violão e das minhas próprias, se juntando a esse som que alucino
horas depois de o vento ter terminado de trazer sua última nota.
Pego o violão e ensaio no quarto, cantando baixo quase num
sussurro que só eu escuto, me dando conta que consigo até tocar acordes que
antes considerava complicados - os quais, antes, costumava tirar as sétimas,
oitavas, simplificando horrendamente. Toco para mim e no final nem chego a ir a
varanda com vergonha, a despeito desse desejo de me mostrar, do qual tenho
ciência e que as vezes ensaio timidamente.
É noite e cai uma garoa fina, já não lembro mais da melodia
que tocava o saxofone fantasma no final de tarde potiguar. Coço a barba já
grande tomada de diversos fios brancos, tentando lembrar da melodia, mas só
identificando os afetos remanescentes em mim.
Ainda chegaria a ouvir aquele som por mais alguns dias,
sempre no mesmo horário, aguardando ansiosamente na janela, até o dia em que as
novas mortes, as crises políticas e a minha própria convocação, para atuar profissionalmente
durante a pandemia, acabassem por me fazer esquecer desse momento efêmero, restando
apenas a lembrança muda de um sentimento trazido pelo vento de fim de tarde de
outono, entre o equador e trópico de capricórnio.