Que ele atravessava os umbrais das casas era bem verdade. Negro à noite, cinzento ao amanhecer e cor de cobre, ahhh cor de cobre, ao entardecer.
O gato era senhor de seus territórios. Às vezes de alguns humanos.
Se perguntassem seu nome, poderia dizer desdenhosamente que não tinha um, que somente criaturas ignorantes precisariam de nomes para saber quem são. Ele era simplesmente ele.
O gato certa vez, ao atravessar a soleira de uma porta (que para os gatos podem ser as mais diversas), havia encontrado uma pequena criança ao entrar no limiar. O limiar era extenso, e não era raro encontrar as mais diversas coisas ao passar por ele.
Ela particularmente cruzava o limiar a muito tempo, tempo suficiente para não se surpreender com as coisas que via por lá antes de chegar ao próximo umbral, geralmente de alguma casa velha. As casas velhas possuíam as melhores entrada para o limiar.
Vez por outra o limiar costumava sugar coisas frágeis para si, o gato sabia bem. Mas uma criança era tão rara naquelas instâncias quanto encontrar algum deus antigo em meio à metrópole.
Seu pelo ia de cobre a negro quando voltou à velha casa apodrecida do bairro. Precisou esperar um pouco até os jovens, que se drogavam do lado de dentro do muro baixo, saírem antes de passar a soleira e caminhar até o quarto da avó, sentada na poltrona mofada a espera de algo que já não se lembrava mesmo quando era viva.
Avó – falou o gato, pondo um filhote de camundongo no chão, fitando os buracos escuros do que já haviam sido olhos castanhos reais. Não falou mais nada.
Ela ajeitou os cabelos, cujos fios teimavam em alçar vôo, como quando se está em baixo d’água e os cabelos tomam vida própria. Explicou-lhe que houvera uma época em que milhares de crianças freqüentavam o limiar, muito tempo atrás.
Contou que elas não precisavam das soleiras, as quais as demais criaturas usavam rusticamente para tal função. Cabia a elas o desbravamento do limiar, mesmo que por um curto período de tempo, antes de precisarem de um nome para se reconhecer.
Por isso não nos lembramos do que se passa antes dos dois anos- sorriu a avó mostrando os dois únicos dentes inferiores e protuberantes na gengiva. Hoje, meu filho, elas passam pelo limiar sem perceber, provavelmente você não a verá nunca mais- sorriu novamente.
A cauda fina do filhote se contorcia em sua boca, enquanto ele abocanhava o que sobrara de seu corpo, sempre a fitar a avó.
Esse será mais um segredo para você- disse em sua voz rouca a apontar o dedo em sua direção.
O gato tinha uma coleção de segredos, como tinha a maioria dos de sua espécie. Na verdade sua espécie era feita do mesmo material dos segredos, daí sua furtividade.
Cruzando a soleira seguinte apareceu no parque, bem ao longe de onde os mendigos costumavam dormir. Ele reconhecia bem o lugar, um dos poucos onde havia um parlamento das árvores, cada vez mais raros, mais raro até do que crianças pequenas no limiar. Havia outros gatos, também chamados ao parlamento.
Caminhou por entre as árvores, cansadas, longe do esplendor que costumavam passar em tempo idos. Não era de sentir pena.
Algo estava para acontecer, mais e mais gatos chegavam a pequena clareira circundada pelo parlamento.
Esticou-se desconfiado. De súbito correu em direção ao enorme tronco do que havia sido de uma jaqueira antiga. Cruzou a raiz exposta que formava uma meia-lua na grama e sumiu.
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