Diziam que ela
havia chegado junto com os holandeses. Era mais uma das estranhas a
desembarcarem no porto da nova colônia holandesa. Russa, com certeza.
Provavelmente
desembarcou pela noite, trazendo apenas um almofariz e uma vassoura de palha,
ninguém falava com ela, mas comentavam de como uma mulher idosa como ela havia
sobrevivido à viagem de navio.
De certo que
ela sobreviveu e se adaptou aos primeiros anos na cidade Maurícea, devido à tolerância
religiosa, onde já falava com forte sotaque. Pouco se sabe o que lhe aconteceu
nos séculos que seguiram após a insurreição e a guerra dos mascates, mas
sabe-se que sobreviveu.
Sua fama não
era, e ainda é pouco, conhecida desse lado do oceano. Deixou para trás uma casa
vedada por ossos, alicerçada sobre pés-de-galinha, de certo apodrecida e levada
pelos séculos. Ela sobreviveu, as mudanças. Ela, seu pilão e sua vassoura.
Acompanhou as mudanças dos séculos, as construções das pontes, os aterramentos,
migrando de bairro em
bairro. Usava o pilão não mais para voar, mas para bater
paçocas de carne seca e a base das tapiocas.
Há quem diga
que já a viu no Alto da Sé, mas é pouco provável, ela gostava mais do porto e
raramente foi muito longe das pontes que levam ao marco zero.
Terminou seus
dias vagando de casarão em casarão antigo a observar a decadência do Recife
Antigo, quase sem falar mais seu idioma materno. Já não lembrava mais as
palavras mágicas em Russo, e as ervas que usavam nas poções não se encontravam
por aqui. Ficara louca, ela, que era uma das figuras mais poderosas do imaginário
de suas terras, não lembrava mais o que a trouxera para esta terra quente, úmida,
cheia de mangues e mosquitos.
Os últimos anos
de sua estadia foram atestados por drogados e prostitutas que desapareciam
pelos casarões. Ainda no fim do século passado fora vista uma única vez na lua
cheia rindo dentro do almofariz voando pelas ruelas e apagando seus rastros com
a vassoura de palha.
Se bem
perguntarem sobre uma velha estranha com um pilão, provavelmente muitos não
saberão dizer. O bairro está mais vazio a cada década, uma diáspora iniciada no
século passado. Todos levados pelos bondes que não mais circulam.
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