Trilha sonora: Blues da Piedade - Cazuza
Não tinha muito
dinheiro, isso era verdade, mas ele vivia da própria fantasia que todos temos
de ser aquilo que, enfim, não somos somente.
Respirava
músicas de Cazuza, sendo o assassinato da flor seu mantra diário. Nas noites úmidas
de diversos sons ele caminhava pelos becos e ruelas que levavam por fim a praça
do arsenal, e há quem dissesse que já o vira de cartola e bengala. Talvez no
carnaval, afinal os bares de radiolas-de-ficha do antigo bairro não eram
convidativos para alguém nesses trajes, embora se vissem jovens de negro e
alguns de sobretudo suando horrores nas noites quentes do bairro.
Não era uma
figura folclórica do antigo bairro decadente de prédios e sinagogas recém-restauradas.
Não era como o vendedor de flores de papel ou a velha dos cachorros. Era quase
uma presença desencarnada, daquelas que se percebem de relance quando se olha
sem querer para o lado.
O último dos dândis
em uma época em que a imagem pesa mais do que o conteúdo, em que o belo fere àquele
que dele não deveria sentir uma única falta, onde as pessoas andam com espelhos
à face, olhando em todas as direções.
Há quem diga
que o já viu tomando uma cerveja em frente ao antigo Cabaret, ou que já o viu
ter o braço carimbado para entrar nas antigas festas que tocavam músicas dos
anos 80 na velha panquequeria após a maia-noite, ou que já o vira sentado
defronte para o monumento fálico do cais, cantado Blues da Piedade enquanto
esperava pelas cinco horas da manhã para pegar a condução para casa.
Mas já faz
muito tempo. Tempo da morte da velha dos cachorros e da grande maioria das
figuras imaginárias que povoavam as ruas que hoje só ficam cheias nas feiras de
domingo. Dizem que era uma mulher, que de perto não tinha como se confundir, mas
na verdade ninguém dá à mínima, como não damos a mínima praquilo que não nos
faz falta.
A noite chega,
os casarões fecham suas portas. Fiteiros e pessoas na rua. De longe o som de
uma ou duas alfaias. Chão de paralelepípedos com trilhos de bondes que não
circulam a muitas décadas. Levaram todos.
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