terça-feira, maio 26, 2015

A velha dos cachorros - do arco "Personagens efêmeros do Recife Antigo"




Costurava suas próprias feridas. Aprendera com a mãe, que exercia o mais próximo que se podia chegar de um saber sobre a medicina do corpo. Dasdores, que fora sinhazinha, antes dele ter nascido para aprender a coser suas cicatrizes.
Sua mãe, dominava os saberes esquecidos dos males da alma, "corpo é só casca, pano de costura"- dizia rindo, unindo ponto-a-ponto os retalhos do corpo.
Peregrinava com o garoto, errante, em troca de comidas, peças velhas de roupa e algumas moedas, em troca dos segredos que aprendera de sua avó. 
Lhe fora dado o direito só de se remendar. Os segredos do coração pertenciam às mulheres da família. À elas era contado sobre o sangue, as dores e os mistérios de criar vida do nada. 
Aos homens era contada uma história diferente, os mais velhos clamavam uma herança de uma época que tinham seus próprios segredos, que foram perdidos.
Em trapos seguia a velha pelas estradas de terra, seca, árida. Seu corpo, colcha de retalhos. Dele saiam os pedaços que ela usava para prever os infortúnios. Mãos hábeis em tirar-lhe a carne, não sentia mais dor. Sentia uma fome ávida, mas não comiam, nenhum dos dois. Por décadas. Também não faziam uso das moedas que, com o passar dos anos, perdiam o valor é eram esquecidas ao longo da estrada.
Andavam as mesmas estradas perdidas, anos a fio, portadores da fome. Tornando-se efêmeros como os próprios relatos de suas aparições.
Castigavam a surdez alheia, fazendo a fome gritar mundo afora, sem fastio, com fome de tudo.  
Chegara ao cais da cidade, muitos e muitos anos atrás. Entrava e saía do bairro velho, em suas peregrinações. Guardava os trapos remendados do que fora seu filho, sua fome, em uma velha valise, que no decorrer dos anos mudava de forma. 
Era seguida pelos cães abandonados, guiados pela voz sussurrante de suas falas desconexas.
Nas noites em que fazia frio no bairro velho, vestia a colcha de retalhos que fora seu rebento e dormia, a sonhar com as eras passadas, vigiada pelos cães, em matilha deitado ao seu redor.
Foi testemunha da chegada das mais diversas criaturas que se espalharam pela cidade, vindas do porto. 
Ainda haveria de testemunhar as novas criaturas nascidas na aurora da ciência, que  convergem para o velho bairro, ávidos por derrubar e destruir os deuses velhos que moram nos escombros dos sobrados, para erguer suas torres em homenagem a si próprios. 


Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Quem procura...