"Então,
no meio da viagem, paro para refletir, porque é natal, e porque não há trabalho
hoje e quase ninguém está interessado em cobrar produção ou em trabalhar.
E,
assim como os milhões que param para refletir sobre seja lá o que for que o
natal represente para cada um, eu me volto novamente pra mim e esqueço dos que
estão próximos, mesmo em distância, pelo menos por um curto momento.
Então
me lembro de agradecer, por tudo aquilo que não consigo por em palavras, não só
pelos presentes e ausentes, mas pelas tragédias pessoais com as quais me
deparei nesses anos. Agradeço pela falta que dói, uns dias mais e outros menos,
e pelo terror.
Porque
agradecer pelo bom é fácil demais, é trivial demais, é importante demais. Eu
olho pela janela do ônibus e faço minhas orações para não sem quem a escutar,
peço perdão pelo que ainda ei de fazer e não peço mais nada pra mim.
Olho
o esmalte gasto das minhas unhas enquanto rezo por aqueles pobres seres humanos
cheios de defeitos e histórias improváveis, tão interessantes e insignificantes
quanto a minha própria.
Sinto
a gota de suor que escorre pelo pescoço e penso e campos de morango, penso no
frio, como se pensar por si só amenizasse o calor dessa véspera de natal à 40 graus.
Estou com calor e estou apaixonada na véspera de natal.
Fecho os olhos... e volto a pensar em campos de morangos."
Pegou
a camisa amarela e vestiu. Foi trabalhar. Beijou a mulher e os filhos. Era
mentira.
Disse
queiriavoltar, cansado mas feliz, para eles. Era mentira.
Tomou
mais um gole antes de dizer que na sexta-feira quitava a pendura da semana
passada. Era mentira.
Sentou
a mendigar e contou que os pássaros haviam quebrado sua cama, tomando sua casa
e fazendo dela um ninho pra eles. Que, por causa desse acontecido, havia ido
para a Índia meditar e que voltou para trabalhar na construção de uma cidadezinha
no interior do estado, porque pagavam bem e ele era forte como um halterofilista
de circo.
E
disse que esse foi o seu fim, consumido pelo trabalho epor aquele vilarejo que sugava a alma dos forasteiros para
alimentar a população.
Era
mentira.
Ele
já estava internado naquele manicômio a décadas. Enorme, barbudo e com fios grisalhos
a despontarem nas têmporas. Das janelasgradeadas, olhava os outros a passarem no corredor, com gritos ecoando,
perdido na realidade.
E
depois , cansado, deitava no colchão coberto por uma lona plásticadormia. Dormia como quem acorda para os
sonhos e ficava com aquela sensação de que havia sonhado algo, que não
lembrava.
E
decidia tocar a vida, porque havia muito trabalho pela frente.
Ele era alto, lembrava um halterofilista
de circo de beira de estrada. Forte e barbudo, sem músculos bem definidos.
Tinha acabado de chegar
naquela cidadezinha quente, perdida em um interior do Brasil, com pessoas
desconfiadas, que murmuravam a chegada do gigante bem-nutrido ao vilarejo, que
não era uma cidade propriamente.
Ficara hospedado em um
quarto que estava disposto em cima da loja de conveniências do posto de
gasolina, ao lado da rodoviária.
O calor lhe lembrava da
Índia, onde estivera anos antes. Era novo ainda, apesar dos fios brancos nas têmporas e alguns a despontarem
da barba.
Conseguiu trabalho fácil
em uma construção, nas usinas da cidade, e rezava para ficar amigo de alguém, porque
não aguentava mais falar sozinho, seu próprio
nome baixinho, no escuro do quarto.
Havia
sonhado com pássaros. Havia sonhado com grades e pessoas também.
De
repente, acordava sozinho no meio da noite e andava pelos quartos do
apartamento, sem medo, e passava poucos instantesa olhar a rua, de madrugada, antes de voltara
dormir.
E
antes de dormir dizia o seu próprio nome baixinho para a noite.
Havia
sonhado com os pássaros, por ter medo deles. E lhes disseram que não temesse,
pois iam de comer os cupins que faziam moradia em sua cama...
O
doutor era gordo e tinha aquele ar bonachão que odiávamos, mas nos “consultávamos”
com ele toda semana.
O
bom doutor sabia deixar a gente feliz, embora essa felicidade não durasse muito
até o mês seguinte. A felicidade que comprávamos dele era bastante cara, por
assim dizer.
E
por assim dizer saíamos às ruas à noite, todos nós, felizes, bastante. E
este que vos escreve era o muitomuitomuitomuitomuito
mais feliz de todos, caminhando pela rua de paralelepípedos molhados e de poças
enormes da cidade velha. Porque era lá que todos nós íamos, fingindo ser
adultos e independentes, e felizes.
Presos
em uma rotina diurna de famílias e estudos, esperávamos a noite chegar para
vestir nossas platis e rumar para a
cidade velha, que nada mais era do que um bairro decadente da cidade, que não
se importava muito com o que faziam lá os nadsats,
desde que gastassem um pouco com o vinho barato, cerveja quente e pequenas
alegrias, dos que ainda moravam nos casarões abandonados e faziam deles
pequenos pontos de encontro com música todos nós, que andávamos em bandos,
mentindo uns para os outros sobre quem realmente éramos.
E
chovia bastante naqueles dias. Sim meus irmãos, chovia muito nas docas do
bairro velho, e era maravilhoso esquentatar
o frio da chuva com aquele vinho velho que nossos pais não aguentariam nem
cheirar. Ingerindo cada vez mais doses de felicidade.
Havia,
naquele tempo, uma trégua não declarada entre todos nós. Bastava olhar para o
chão e ver passar apressadamente um mar de chinelos, coturnos, tênis, plataformas
e sapatos lustrosos. A guerra acontecia contra os que dormiam silenciosamente
no outro lado da ponte, que era a única forma de chegar ao bairro de sobrados e
ruas de paralelepípedos, escuras e húmidas, que desembocavam nas docas.
Mas
ai aconteceu, meus irmãos. O primeiro bonde passou exatamente às duas horas da
manhã, vindo do nada e indo para sejaláondefor, e claro que houve quem subisse
no bonde e fosse embora neblina adentro, pitando e cantando até não serem mais
vistos. Eu não havia dito antes, mas as ruas tinham marcas antigas dos bondes
de outrora.
Foi
ai que começaram os desaparecimentos. Mas não dávamos à mínima, na verdade. Que
se foda - pensávamos. Desapareça quem queira.
Eu
estava lá e o vi passar vazio, na semana seguinte, e ninguém o pegou dessa vez.
E na semana seguinte a esta, havia uma conversa carregada pelo vento de grupo
para grupo, uma razdraz de que os desaparecidos estavam a convidar a
todos. Então perguntei a um vek malenk
que tinha cabelos tingidos de verde e bebia em uma mesa junto a nossa, de onde
procediam as conversas absurdas sobre os desaparecidos,
então o pequenino olhou para mim com seus olhos de cores diferentes e começou a
govoretar uma histéria sobre o velho bonde levar ao nosso derradeiro encontro.
-
Eu soube que lá eles estão a festejar eternamente e que o tal convite dizia que
aqueles seriam os últimos salvo-condutos para nós – falava o pequenino de olhos
diferentes. – Obrigado irmão – dissemos, eu e os demais, a nos olharmos na nossa
própria mesa.
E
tiveram mais desaparecimentos, claro que haveria de ter.
Não
se viam mais tantos maltchikviks a
noite, de forma que os que não aceitaram os convites reiterados dos desaparecidos ou que deixaram de vir à
cidade velha à noite por medo ou pela, agora, hipervigilância dos starres responsáveis pelos seus
filhinhos (que nada mais era do que o medo de ter sua tutela investigada e
punida pelo Estatat), formaram
pequenos grupos de druguis e
declararam o fim da trégua.
E
vosso escritor, que não era dado à ultraviolência, havia tomado sua decisão.
Porque não dava mais para ficar mais muitomuitomuitomuitomuito
mais feliz do que todos, sem correr o risco de ter a gorlo perfurada por alguma britva,
sem mais nem menos. Eu precisava de suprimento.
O
doutor ficara animado com minha última visita, pois não havia mais tantos maltchikviks a procurá-lo atrás daquela
deliciosa felicidade que podia ser diluída com qualquer coisa. Seus olhos
brilhavam e ele esmekeava como uma babushka, enquanto dizia ao seu bom e
velho cliente que o resto era por conta da casa, e que eu poderia dizer aos
demaisque o bom doutor sempre tinha
um bom desconto para seus druguizinhos.
Na
mesma noite, na cidade velha, eu esmekeava
gromki, para mim mesmo, mesmo sem estar feliz (se é que vocês me entendem),
atento para algum bratchni querendo
ver quanto króvi poderia tirar a sua noja. Mesmo assim esmekeava, parado em uma das antigas estações que já não existiam
mais, olhando a neblina que vinha das docas, por volta das duas horas.
E
eis que, para minha noite perfeita, parara ao meu lado uma devotchka horrorshow, também a esperar o velho bonde da cidade
velha, com promessas se uma noite interminável daquilo que não éramos nós mesmos.
Então
ouvimos o sino. E lá estava ele, parado sem condutor. – Você não vai subir? –
perguntou a devotchka, com uma goloz deliciosa me videando com seus olhos contornados de lápis preto.
Eu
olhava para a ponte, meus irmão. Eu queria muito mais. E, se esse era realmente
o último salvo-conduto, não iria, seu bom narrador, odinoki para sejaláondefor.