terça-feira, dezembro 24, 2013

A Christmas song


Dos cadernos de L.H.



"Então, no meio da viagem, paro para refletir, porque é natal, e porque não há trabalho hoje e quase ninguém está interessado em cobrar produção ou em trabalhar.
E, assim como os milhões que param para refletir sobre seja lá o que for que o natal represente para cada um, eu me volto novamente pra mim e esqueço dos que estão próximos, mesmo em distância, pelo menos por um curto momento.
Então me lembro de agradecer, por tudo aquilo que não consigo por em palavras, não só pelos presentes e ausentes, mas pelas tragédias pessoais com as quais me deparei nesses anos. Agradeço pela falta que dói, uns dias mais e outros menos, e pelo terror.
Porque agradecer pelo bom é fácil demais, é trivial demais, é importante demais. Eu olho pela janela do ônibus e faço minhas orações para não sem quem a escutar, peço perdão pelo que ainda ei de fazer e não peço mais nada pra mim.
Olho o esmalte gasto das minhas unhas enquanto rezo por aqueles pobres seres humanos cheios de defeitos e histórias improváveis, tão interessantes e insignificantes quanto a minha própria.
Sinto a gota de suor que escorre pelo pescoço e penso e campos de morango, penso no frio, como se pensar por si só amenizasse o calor dessa véspera de natal à 40 graus. Estou com calor e estou apaixonada na véspera de natal.
Fecho os olhos... e volto a pensar em campos de morangos."

sábado, novembro 30, 2013

As grades - do arco "Contos Inacabados"




Pegou a camisa amarela e vestiu. Foi trabalhar. Beijou a mulher e os filhos. Era mentira.
Disse que  iria  voltar, cansado mas feliz, para eles. Era mentira.
Tomou mais um gole antes de dizer que na sexta-feira quitava a pendura da semana passada. Era mentira.
Sentou a mendigar e contou que os pássaros haviam quebrado sua cama, tomando sua casa e fazendo dela um ninho pra eles. Que, por causa desse acontecido, havia ido para a Índia meditar e que voltou para trabalhar na construção de uma cidadezinha no interior do estado, porque pagavam bem e ele era forte como um halterofilista de circo.
E disse que esse foi o seu fim, consumido pelo trabalho e  por aquele vilarejo  que sugava a alma dos forasteiros para alimentar a população.
Era mentira.
Ele já estava internado naquele manicômio a décadas. Enorme, barbudo e com fios grisalhos a despontarem nas têmporas. Das janelas  gradeadas, olhava os outros a passarem no corredor, com gritos ecoando, perdido na realidade.
E depois , cansado, deitava no colchão coberto por uma lona plástica  dormia. Dormia como quem acorda para os sonhos e ficava com aquela sensação de que havia sonhado algo, que não lembrava.
E decidia tocar a vida, porque havia muito trabalho pela frente.

quinta-feira, novembro 28, 2013

Chegada – do arco “contos inacabados”




Ele era alto, lembrava um halterofilista de circo de beira de estrada. Forte e barbudo, sem músculos bem definidos.
Tinha acabado de chegar naquela cidadezinha quente, perdida em um interior do Brasil, com pessoas desconfiadas, que murmuravam a chegada do gigante bem-nutrido ao vilarejo, que não era uma cidade propriamente.
Ficara hospedado em um quarto que estava disposto em cima da loja de conveniências do posto de gasolina, ao lado da rodoviária.
O calor lhe lembrava da Índia, onde estivera anos antes. Era novo ainda, apesar  dos fios brancos nas têmporas e alguns a despontarem da barba.
Conseguiu trabalho fácil em uma construção, nas usinas da cidade, e rezava para ficar amigo de alguém, porque não aguentava  mais falar sozinho, seu próprio nome baixinho, no escuro do quarto.

segunda-feira, novembro 25, 2013

Os pássaros – do arco “contos inacabados”





Havia sonhado com pássaros. Havia sonhado com grades e pessoas também.
De repente, acordava sozinho no meio da noite e andava pelos quartos do apartamento, sem medo, e passava poucos instantes  a olhar a rua, de madrugada, antes de voltara dormir.
E antes de dormir dizia o seu próprio nome baixinho para a noite.
Havia sonhado com os pássaros, por ter medo deles. E lhes disseram que não temesse, pois iam de comer os cupins que faziam moradia em sua cama...

domingo, outubro 20, 2013

Nadsats - do arco "Personagens efêmeros do Recife Antigo"





O doutor era gordo e tinha aquele ar bonachão que odiávamos, mas nos “consultávamos” com ele toda semana.
O bom doutor sabia deixar a gente feliz, embora essa felicidade não durasse muito até o mês seguinte. A felicidade que comprávamos dele era bastante cara, por assim dizer.
E por assim dizer saíamos às ruas à noite, todos nós, felizes, bastante. E este que vos escreve era o muitomuitomuitomuitomuito mais feliz de todos, caminhando pela rua de paralelepípedos molhados e de poças enormes da cidade velha. Porque era lá que todos nós íamos, fingindo ser adultos e independentes, e felizes.
Presos em uma rotina diurna de famílias e estudos, esperávamos a noite chegar para vestir nossas platis e rumar para a cidade velha, que nada mais era do que um bairro decadente da cidade, que não se importava muito com o que faziam lá os nadsats, desde que gastassem um pouco com o vinho barato, cerveja quente e pequenas alegrias, dos que ainda moravam nos casarões abandonados e faziam deles pequenos pontos de encontro com música todos nós, que andávamos em bandos, mentindo uns para os outros sobre quem realmente éramos.
E chovia bastante naqueles dias. Sim meus irmãos, chovia muito nas docas do bairro velho, e era maravilhoso esquentatar o frio da chuva com aquele vinho velho que nossos pais não aguentariam nem cheirar. Ingerindo cada vez mais doses de felicidade.
Havia, naquele tempo, uma trégua não declarada entre todos nós. Bastava olhar para o chão e ver passar apressadamente um mar de chinelos, coturnos, tênis, plataformas e sapatos lustrosos. A guerra acontecia contra os que dormiam silenciosamente no outro lado da ponte, que era a única forma de chegar ao bairro de sobrados e ruas de paralelepípedos, escuras e húmidas, que desembocavam nas docas.
Mas ai aconteceu, meus irmãos. O primeiro bonde passou exatamente às duas horas da manhã, vindo do nada e indo para sejaláondefor, e claro que houve quem subisse no bonde e fosse embora neblina adentro, pitando e cantando até não serem mais vistos. Eu não havia dito antes, mas as ruas tinham marcas antigas dos bondes de outrora.
Foi ai que começaram os desaparecimentos. Mas não dávamos à mínima, na verdade. Que se foda - pensávamos. Desapareça quem queira.
Eu estava lá e o vi passar vazio, na semana seguinte, e ninguém o pegou dessa vez. E na semana seguinte a esta, havia uma conversa carregada pelo vento de grupo para grupo, uma razdraz de que os desaparecidos estavam a convidar a todos. Então perguntei a um vek malenk que tinha cabelos tingidos de verde e bebia em uma mesa junto a nossa, de onde procediam as conversas absurdas sobre os desaparecidos, então o pequenino olhou para mim com seus olhos de cores diferentes e começou a govoretar uma histéria sobre o velho bonde levar ao nosso derradeiro encontro.
- Eu soube que lá eles estão a festejar eternamente e que o tal convite dizia que aqueles seriam os últimos salvo-condutos para nós – falava o pequenino de olhos diferentes. – Obrigado irmão – dissemos, eu e os demais, a nos olharmos na nossa própria mesa.
E tiveram mais desaparecimentos, claro que haveria de ter.
Não se viam mais tantos maltchikviks a noite, de forma que os que não aceitaram os convites reiterados dos desaparecidos ou que deixaram de vir à cidade velha à noite por medo ou pela, agora, hipervigilância dos starres responsáveis pelos seus filhinhos (que nada mais era do que o medo de ter sua tutela investigada e punida pelo Estatat), formaram pequenos grupos de druguis e declararam o fim da trégua.
E vosso escritor, que não era dado à ultraviolência, havia tomado sua decisão. Porque não dava mais para ficar mais muitomuitomuitomuitomuito mais feliz do que todos, sem correr o risco de ter a gorlo perfurada por alguma britva, sem mais nem menos. Eu precisava de suprimento.
O doutor ficara animado com minha última visita, pois não havia mais tantos maltchikviks a procurá-lo atrás daquela deliciosa felicidade que podia ser diluída com qualquer coisa. Seus olhos brilhavam e ele esmekeava como uma babushka, enquanto dizia ao seu bom e velho cliente que o resto era por conta da casa, e que eu poderia dizer aos demais que o bom doutor sempre tinha um bom desconto para seus druguizinhos.
Na mesma noite, na cidade velha, eu esmekeava gromki, para mim mesmo, mesmo sem estar feliz (se é que vocês me entendem), atento para algum bratchni querendo ver quanto króvi poderia tirar a sua noja. Mesmo assim esmekeava, parado em uma das antigas estações que já não existiam mais, olhando a neblina que vinha das docas, por volta das duas horas.
E eis que, para minha noite perfeita, parara ao meu lado uma devotchka horrorshow, também a esperar o velho bonde da cidade velha, com promessas se uma noite interminável daquilo que não éramos nós mesmos.
Então ouvimos o sino. E lá estava ele, parado sem condutor. – Você não vai subir? – perguntou a devotchka, com uma goloz deliciosa me videando com seus olhos contornados de lápis preto.
Eu olhava para a ponte, meus irmão. Eu queria muito mais. E, se esse era realmente o último salvo-conduto, não iria, seu bom narrador, odinoki para sejaláondefor.
 

Singing in the Rain by Frank Sinatra on Grooveshark
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