domingo, abril 28, 2013

Bossa Nova



Ele olhava pela janela. Eram dias de chuva, enfim a chuva que demorara meses e que, agora, dava leve toque de frio aos cômodos quase vazios da casa.
Estava sentado em sua mesa, à olhar pela janela. Xícara vazia, livros nas estantes. Via a chuva.
O cheiro de terra molhada, doce. Lembrava-se da chuva de sua infância e do cheiro doce de terra molhada do quintal, das roseiras em flor.
A casa de sua infância. Escombros varridos do passado, as pétalas das rosas-meninas, da roseira de sua mãe, levadas ao vento em sua memória.
Uma velha canção de Vinícius no rádio, sua vida em bossa nova, em um saudosismo de quem lavoura as lembranças com esmero.
Olhando as árvores, lembrou do Rio. Do café-da-manhã tomado na Gávea. Estava com saudade da chuva, ela, que trazia algo perdido de si. Mensageira das pessoas e das lembranças, nunca compartilhadas.
Súbito, lembrou-se que era domingo. Levantou-se da mesa e foi embora com o vento.

domingo, abril 21, 2013

Nove anos do Tardes Quentes de Outono






Eu não lembro bem dos meus nove anos. Puxando pela memória não deve ter sido lá uma grande época.
Talvez fossem os anos em que eu deixava barcos de papel, feitos pelo meu avô, descerem pela correnteza, formada pela chuva, na descida da rua de sua casa.
Talvez fossem os anos em que comecei a ler gibis, a desenhar, a ler meus primeiros livros de literatura não-infantil.
Talvez os nove anos não seja uma idade memorável para muita gente. O Tardes Quentes de Outono faz nove anos hoje. Cada ano com seu número específico de posts, contos, reflexões e de pretenciosas tentativas de literatura. Meus nove anos novamente.
Um brinde com uma xícara de café bem quente, e doce, a cada um desses anos. E, por falar em brinde, um brinde a cada um dos leitores que passaram, e ainda passam por aqui, por deixar esse espaço mais aconchegante e por contribuírem, muitas vezes com observações mais interessantes que os próprios textos, com esse espaço que é coletivo.
Acredito que escrever, seja lá o que for, é endereçar algo para um outro. Muitas vezes é o registro daquilo que não se pode por em palavras, e pelo qual só pode ser posto por elas, em uma matemática combinatória pela qual falamos de algo unicamente para poder dizer tudo, ou próximo de tudo, de uma outra coisa.
Realmente não lembro bem dos meus nove anos. Mas posso dizer, com certeza, que me lembro de cada ano daqui, do primeiro post feito de madrugada, após a chegada da faculdade, aos desenhos feitos no tablet que acompanham os últimos posts. Do café coado, feito pelo meu pai, ao expresso barista, da minha máquina de café expresso, mudou muita coisa. Ah mudou. Um brinde à saudade e às mudanças. Porque é disso que somos feitos, de saudades e mudanças.

Obrigado por esses nove anos, os quais irei me lembrar.

quarta-feira, abril 17, 2013

Feito pra acabar


Leio o livro ao sacolejar do ônibus. O calor escaldante de ventos quentes a entrar pela janela do ônibus, suado.
Desço para aguardar outro ônibus, livro na mão. O suor a escorrer na testa, gotas grossas a deixar os cabelos levemente úmidos, logo secos pelo vento da avenida.
Entreguei meus pontos, me sinto um derrotado, parado no calor do Recife, de mochila e livro na mão a esperar o próximo ônibus. Sinto-me novamente um estrangeiro. Sozinho.
Sozinho pego o próximo ônibus, volto a folhear o livro, fantasiando as mais diversas situações do meu cotidiano, como herói e vilão das coisas que me são alheias, as quais o tempo se encarrega de levar embora à revelia dos meus desejos. Passo pelas pontes, olho o rio escoltado pelas árvores de mangue. Que calor, um pingo de suor cai da testa na lente interna dos meus óculos de aros redondos e nem me dou ao trabalho de enxugar. Leio mesmo assim.
Orgulhoso e derrotado, personagem do meu próprio cotidiano sentado à última cadeira do ônibus vazio, com sede. Respiro e encontro a mim mesmo em um relance da Lavoura Arcaica, me animo, em um ânimo triste de meio de tarde, um ânimo de quem vislumbra rápido que todos nós somos feitos pra acabar.
Desço em minha parada, encontro com as três parcas no cruzamento da cidade universitária, aceno pra elas com a cabeça e caminho pra casa. Caminho para subir os degraus do prédio, com uma leve quebra de calor pela umidade das paredes.
Olho a água cair gelada no copo de vidro, o cheiro da água gelada a afastar toda a aridez da tarde. Ela doce a descer esfriando minha garganta enquanto sinto o suor escorrer pela minha nuca, dos meus cabelos pesados e úmidos até o colarinho branco da camisa.
Olhando meu mundo particular, minha casa, minha acolhida, agradeço. Por todas as escolhas erradas que fiz, por todo o mal que, dependente ou independente de mim, me afligiu ou afligirá. Por que, de todo, o saldo tem sido bom, e eu tive a oportunidade de fazer coisas boas, e mesmo disso a gente é feito pra acabar, um dia.

sábado, abril 13, 2013

Flauta Transversal




Lembro-me do som de fundo de uma flauta transversal em uma música do Chico Buarque. Meu irmão toca flauta transversal. Lembro de que, quando mais jovens, ele ficava a tocar uma breve introdução do Jethro Tull.
Vez em quando escuto o som da flauta, mas na maior parte das vezes é o vento. Nunca tocamos música juntos, só a vida, e, mesmo assim, por um breve tempo antes de seguirmos nossos próprios caminhos.
Contei-lhe uma vez o conto do flautista de Hamelin, os ratos e as crianças. Levados pra longe, fomos nós, estando perto com uma saudade que, às veze,s é de quem mora a milhares de quilômetros de distância.
Pela manhã, antes de ir ao trabalho, ele passa aqui em casa e recordamos sempre algo da infância, e logo ele se vai e eu me vou. Viver.
 

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