segunda-feira, julho 29, 2013

À guisa de uma faxina de inverno






“- Acordo de um sonho louco, no qual eu administrava uma franquia de comida tailandesa, às 4 da manhã. Não se dá para ter sonhos tranquilos quando a vida está um caos” – dizia pra si mesmo no escuro, como a um terceiro, tentando olhar as horas no relógio do quarto.

- Ah, meu Deus! Dai-me paciência. Outro dia que vou passar com medo do mundo acabar e desmoronar sobre minha cabeça.

Ele tomava banho e ruminava a mesma velha história, da importância do seu “trabalho”. Tinha que limpar e arrumar as coisas erradas do universo, tal qual uma limpeza de fim de inverno em uma casa grande. Só descansava aos fins-de-semana, e às vezes nem isso.

Quando jovem, fizera um pacto com uma criatura que já era velha quando a lua nasceu e que lhe prometeu algo tão efêmero, porém  magnífico e impossível aos olhos do jovem.

“[...] - Pronto pra assinar? Aqui e aqui – sorria.”

“- Sim, mas que tipo de trabalho eu vou ter que fazer mesmo pra pagar?”

“- Você conhece o mito de Sísifo? Não? Bem, será bem menos vertical do que o daquele garoto bobo. Ah, e assine aqui também. [...]”

Dito isto, passado o pequeno momento de apogeu de seu desejo, assumira a labuta de evitar o caos, ordenando e trocando os objetos das prateleiras de um universo inteiro, a guisa de uma faxina de inverno.

Então ligava o rádio e, para começar, pegava a vassoura, tirando os entulhos debaixo do tapete pensando que, pelo menos, não estava na administração de um restaurante.

terça-feira, julho 16, 2013

A casa de bonecas






Sonho:
Desejo, se você não fosse da família...

Desejo:
Mas eu sou.

Sonho:
Sim. Você é.
Desejo, escute com atenção. Lembre-se disso.
Nós, os perpétuos somos servos dos vivos, não seus mestres. Nós existimos porque eles sabem, no fundo de seus corações, que existimos.
Quando o último ser vivo deixar esse universo, nossa tarefa estará concluída.
E nós não os manipulamos. É mais correto dizer que eles nos manipulam. Somos seus brinquedos. Suas bonecas, se preferir.
E você... Desespero e até a pobre Delírio deveriam se lembrar disso.

Desejo:
Eu... Eu não entendo.

Sonho:
Eu temia que não compreendesse. Muito bem.
Eu lhe direi algo que ENTENDERÁ, irmã-irmão. Mexa comigo ou com os meus novamente, e ESQUECEREI que você é da família Desejo.
Você se julga forte o suficiente para ficar contra MIM? Contra MORTE? Contra DESTINO?

Desejo:
Não.

Sonho:
Lembre-se disso da próxima vez que se sentir inspirada a interferir nos meus assuntos.
Lembre-se bem.

“E Desejo caminha pelas câmaras de seu coração. Ela caminha pelo Limiar, sua cidadela e sua proteção. E se pergunta:”

Desejo:
O que ele quis dizer? Que nós somos brinquedos deles?
Os seres humanos são criaturas de Desejo. Eles se contorcem e se dobram conforme minhas exigências. Se eu pensasse de outra forma, teria enlouquecido, como Delírio. Ou abandonaria meu reino como nosso irmão perdido.
Pobre Sonho...
Eu realmente o incomodei dessa vez.








(Gaiman, Neil.  in: Sandman: A casa de bonecas. Ed. CONRAD - VERTIGO, p. 226-227)


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