terça-feira, abril 08, 2014

A chuva e os pares (por Renata Sá Carneiro-Leão*)



Era um Dia de Finados e não tinha muito o que fazer. Não para quem era jovem, sem dinheiro e cheio de ideologias restritivas para programas clichês capitalistas.
A tarde estava meio nublada e tediosa no terraço de casa. O convite da amiga – meio pesado para um dia pesado – veio a calhar: um filme de Godard naquele cinema-cabeça.
Já na fila da bilheteria, a figura cabeluda de estatura acima da média nos contaminou com sua aura simpática. Aparentemente ele queria demonstrar rebeldia, com o jeans surrado, o all-star de cano longo e os brincos e correntes balançando. Os olhos, no entanto, acabavam com sua reputação de não-se-aproxime-sou-mau, denunciando sua sensibilidade sem qualquer cortina.
O filme, claro, nos causou convulsões, as sinapses estavam a mil, e as moedas unidas deram para financiar uma cerveja e uma porção de calabresa com fritas no único boteco que encontramos aberto.
Falamos de gestalt, do infinito, de Legião Urbana, do cosmos e das sutilezas do filme e da vida. Esse imaginário costurado com os pequenos detalhes do cotidiano, somados à imensidão transcendental passou a permear os nossos encontros e conversas tão elucidativas e motivadoras.  Era o nosso elo, a nossa marca, a nossa tribo, quem éramos.
Tornamo-nos companheiros nas escritas virtuais. Naquele mundinho ainda novo de templates quadrados e tudo o mais. Foi quando conheci o seu mundo, seus desenhos e letras, o seu cantinho das tardes quentes, dos dias chuvosos. Reivindiquei moradia e ali mantive ninho, sempre me banhando daquele sol que alimentava os nossos sonhos e também das sombras que desnudavam as querelas da alma.
Um dia, peguei-me borrando o papel com o café distraidamente, e sorri. Quantas luas tínhamos atravessado desde aquelas horas produtivas de bem traçadas linhas tão intensas? Quantas estações se passaram entre crônicas e contos e poesias, ilustrações e gravuras e rabiscos? Quanto de nós ainda resta da rebeldia aparente e da limpidez interior? Destaquei a folhinha do dia e vi dez anos voando num filme ligeirinho e tão bonito que deu cócegas.






*Renata é jornalista (a Jornalista) e escritora do blog números pares. E foi assim que a gente se conheceu, lindo assim.

2 comentários:

Renatinha disse...

Que lindo, meu amigo! É uma honra participar desse momento histórico afetivo singular! Muitos anos de vida pro Tardes!!! =*

Eduardo disse...

Obrigado pelo presentão, Jornalista! Eu não poderia ter sintetizado esse encontro histórico (literalmente) com tanta sensibilidade!

=***

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