Era um Dia de Finados e não tinha muito o que
fazer. Não para quem era jovem, sem dinheiro e cheio de ideologias restritivas
para programas clichês capitalistas.
A tarde estava meio nublada e tediosa no terraço de
casa. O convite da amiga – meio pesado para um dia pesado – veio a calhar: um
filme de Godard naquele cinema-cabeça.
Já na fila da bilheteria, a figura cabeluda de
estatura acima da média nos contaminou com sua aura simpática. Aparentemente
ele queria demonstrar rebeldia, com o jeans surrado, o all-star de cano longo e
os brincos e correntes balançando. Os olhos, no entanto, acabavam com sua
reputação de não-se-aproxime-sou-mau, denunciando sua sensibilidade sem
qualquer cortina.
O filme, claro, nos causou convulsões, as sinapses
estavam a mil, e as moedas unidas deram para financiar uma cerveja e uma porção
de calabresa com fritas no único boteco que encontramos aberto.
Falamos de gestalt, do infinito, de Legião Urbana,
do cosmos e das sutilezas do filme e da vida. Esse imaginário costurado com os
pequenos detalhes do cotidiano, somados à imensidão transcendental passou a
permear os nossos encontros e conversas tão elucidativas e motivadoras.
Era o nosso elo, a nossa marca, a nossa tribo, quem éramos.
Tornamo-nos companheiros nas escritas virtuais.
Naquele mundinho ainda novo de templates quadrados e tudo o mais. Foi quando
conheci o seu mundo, seus desenhos e letras, o seu cantinho das tardes quentes,
dos dias chuvosos. Reivindiquei moradia e ali mantive ninho, sempre me banhando
daquele sol que alimentava os nossos sonhos e também das sombras que desnudavam
as querelas da alma.
Um dia, peguei-me borrando o papel com o café
distraidamente, e sorri. Quantas luas tínhamos atravessado desde aquelas horas
produtivas de bem traçadas linhas tão intensas? Quantas estações se passaram
entre crônicas e contos e poesias, ilustrações e gravuras e rabiscos? Quanto de
nós ainda resta da rebeldia aparente e da limpidez interior? Destaquei a
folhinha do dia e vi dez anos voando num filme ligeirinho e tão bonito que deu
cócegas.
*Renata é jornalista (a Jornalista) e
escritora do blog números pares. E foi assim que a gente se conheceu, lindo
assim.
2 comentários:
Que lindo, meu amigo! É uma honra participar desse momento histórico afetivo singular! Muitos anos de vida pro Tardes!!! =*
Obrigado pelo presentão, Jornalista! Eu não poderia ter sintetizado esse encontro histórico (literalmente) com tanta sensibilidade!
=***
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