terça-feira, novembro 13, 2012

Gatos no quintal



Arquivo pessoal


Ela era uma gata velha. Preta com peito branco. Tinha o mérito de ser sobrevivente numa cidade cheia de carros, diversas ninhadas paridas e deixadas à própria sorte como ela mesma já fora um dia. 

Contava com a experiência de um animal que já se encontrava em sua quinta vida, não seria mais tão descuidada ou confiante como fora nas duas primeiras.

A conheci em um abril de chuva. Tinha ares de uma felina de grande porte, rainha da cidade de concreto. Acampara uma temporada em meu quintal, período no qual travamos um relacionamento minimamente amistoso.  Eu era para ela um filhote de homem curioso e fácil de lidar (fato do qual soube tirar todo o proveito para sua sobrevivência naquela época).

Dizia-me que não acreditava em Deuses, e achava estranho que alguns animais (como eu) só tivessem apenas uma única oportunidade de viver aqui. Desdenhava dos outros gatos antes de sumir em alguma sombra. Ela disse que só em sua terceira vida aprendeu a usar as passagens que davam em lugares distantes, porém eram difíceis de serem encontradas.  Eu tinha sorte de ter uma delas na sombra da árvore do quintal.

Ela nunca falava das suas duas primeiras vidas, só com certo sarcasmo e humor das demais. Acho que ela gostava de mim, às vezes dizia que eu bem que poderia ter sido um bom filhote, mas que ela não tinha a mínima vocação para ser mãe. 

Conversávamos horas às vezes. Eu sentado, de galochas, à soleira da porta enquanto ela se acomodava ao lado da árvore, protegida da chuva com suas orelhas rasgadas a me fitar. Quando adoeci ela veio todos os dias à janela do meu quarto, mas não dizia mais nada.

No trigésimo quarto dia de sua estada no meu quintal eu soube que ela iria embora. Na verdade já sentia isso a um bom tempo, talvez ela estivesse sem jeito para dizer, mas não era isso. Ela simplesmente disse que estava de partida. Nem olhou pra trás enquanto caminhava para a sombra que a árvore fazia às três horas da tarde e que apontava sempre para o leste. 

Nem me atrevi a perguntar se a veria de novo, nem pude correr até ela por causa da chuva. Só pedira, antes de entrar nas sombras, que não arrancasse a árvore.
Sumiu então. Nunca mais a vi. 

Nos anos que seguiram até mudar de lá, tive diversos visitantes em busca daquela mesma árvore em meu quintal. Alguns amistosos, outros intratáveis. 

Um dos últimos que encontrei era bastante comunicativo, jovem ainda em sua segunda vida. Dissera-me que os gatos e alguns outros animais e seres podiam atravessas certos lugares que serviam de portais para eles. Os melhores eram os das casas velhas, mas geralmente eram usados por espíritos e outras criaturas pouco amigáveis. Disse que eu tinha sorte de ter um bem no meu quintal, e era uma pena que eu não pudesse usá-lo. 

Antes de ir, perguntei por uma gata preta, surrada. Disse que era uma pessoa querida pra mim. Ele, muito prestativo, disse que a vira uma única vez de relance, enquanto conversava com outro gato. 

Disse-me que era uma bela senhora, porém meio estranha. Jurava que havia escutado ela dizer ao outro gato que havia encontrado um de seus primeiros filhotes, que havia perdido muitas vidas atrás. Um filhote-menino.

domingo, julho 08, 2012

O Enforcado e o Cupido



Texto: Luis Magalhães
Ilustração: Tempestade 

Encontrava-se o enforcado mal, enlouquecera - dizia a si mesmo, mas nunca fora ele possuidor de cabeça ao menos em posição normal. Naquele dia como a maioria dos outros, os deuses não tinham muito tempo a perder, preferiam se ocupar de suas próprias vaidades. Sentado com sua harpa em uma nuvem qualquer, o Cupido conseguiu sentir os lamurios silenciosos do enforcado em seu sofrimento, e decidiu que podia dar uma descida. E por que não consolar esse de mundo virado para o ar?

O enforcado vislumbrava o nada, seu olhar perdido indicava que alí já não mais existia uma alma inteira, era um resto, um fragmento de esperança duramente machucado.

-Olá! O que te rouba o sorriso pelo dia, que te apaga o brilho dos seus olhos, e te afasta de todo o mundo? Pareces tão mal, disse o Cupido desfocado, entendendo que ali não era o seu lugar.

-Oi. Oh Cupido, se outrora eu me encontrava na eminência do apertar da corda, hoje já me voga no falso desejo que ela contorça a vida e leve minha dor, antes
sentir a corda a me ameaçar, do que o infortúnio que me fizeste sentir.

-Ô, é de amor que sofres?

Surge nos olhos do enforcado um brilhar fraco como do fim de uma vela que nos seus últimos segundos ilumina todo um quarto. Com voz firme e compenetrado, ele responde: - Sofro da perda, da falta, da fome, da companhia, da voz, do sorriso, do cheiro, do sabor, de sonhar, do ter que, do não ter que, do esperar, de não esperar, de saber, e do não querer. Sofro pela entrega.
  
-Oh enforcado, amar é sofrer, se não te entregas, não podes amar. E se sabes que não sabes amar deverias tirar o verde, antes que ele cresça em espinhos. Raros são os rios que já nascem fortes, eles se transformam pelas águas que recebem. Não procures tirar a fumaça do fogo enquanto a madeira ainda estala. Apegues-te à eterna esperança que, mais cedo ou mais tarde, tudo dê certo, que depois da tempestade vem a calmaria.

- Não sou o louco para blasfemar acusando-te de não conhecedor do amor, amigo Cupido. Mas nenhuma coisa que queiramos que dure pode começar pensando quando vai quebrar. Não se pode separar o explendor das rosas azuis dos seus espinhos, os rios não precisam ser fortes para destruirem campos quando inudam, e muitos rios não diferentes de córregos formam grandes lagos belos e tranquilos. Não ousarei tocar no fogo neste momento que ele consome, o tempo é de esfriar, mas não procuro calmaria.  Tenho a certeza de que antes ter amado e sonhado com o possível sem fim, do que nunca ter vivido o que vivi. No fim, nenhum amor morre, só nos torna mais amados e a outra pessoa mais amada, transformamo-nos em pessoas melhores quando podemos dividir um pouco do que só existe em cada um de nós.

O Cupido encantado:
- Se quando saí de minha nuvem com coração apertado tinha escondido a minha dor de um trabalho mal feito, tu me ensinas que amar é muito mais do que ser amado, é um estado de ignorância de tudo o que não é. É o poder de renascer com a alegria de ter vivido e aprender que o mundo é provado como nossa alma pode provar. Da tua pureza, não posso e não vou-te acalmar o espirito, vou te dar apenas a certeza, que sempre hás de amar.

Luís Magalhães (24 de junho de 2012.) - Direitos reservados.
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Um texto que adorei ilustrar, do meu grande amigo Lulu!

domingo, julho 01, 2012

Depois da Chuva – do arco "Breves histórias de assassinatos e coisas obscuras"


Ele fumava o cigarro, suas mãos tremiam. Olhando para elas se deu conta do quão velho estava. À suas costas estantes e prateleiras abarrotadas de livros nos mais diversos idiomas.Dava mais um trago e se perguntava do que adiantava o conhecimento que tinha: saber ler em três idiomas; confrontar as visões de mundo de Schopenhauer e Nietzsche; saber se, para Camus, responder se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, não são tão fundamentais quanto responder a questão do suicídio.Um velho inteligente. Solitário, como a maioria das pessoas que são muito inteligentes. Sabia que não passaria daquela noite. Saboreou o cigarro como um último pedido. Só lhe tinham sobrado os livros, tinha gastado tudo na última empreitada, em um trabalho que aceitara quase de graça.Cobrava caro pelos seus serviços, era um garoto quando começou a aceitar assassinatos por encomenda. De boa família, culto, enfim, acima de qualquer suspeita. Matava políticos. Tinha uma foto emoldurada na sala em que apertava a mão de Vargas. Acima de qualquer suspeita.Seu último serviço o havia comprometido, sabia que subiam as escadas do seu prédio até a cobertura. Seu último serviço, sabia. O fizera da forma mais deliciosamente bárbara e profana, do que jamais fizera em todo os seus anos de trabalho.Fumava seu cigarro e aguardava ansioso pela sua aposentadoria que subia a paços largos pela escadaria do prédio.Porta arrombada e um tiro seco, silenciador. O corpo do velho em sua poltrona de leitura. Depois da chuva.

quarta-feira, junho 20, 2012

A coisa - do arco "Breves histórias de assassinato e coisas obscuras"

Era madrugada, o tempo tranquilo. Quem havia de sair já o tinha feito a mais de uma hora atrás. Saíram com medo, muito medo. O único que ficara queria mais, estava envolvido em algo que não tinha volta. Não queria voltar, não depois do que aparecera e lhe fora revelado pela pequena coisa que havia passado pela soleira a pouco mais de uma hora ao ser convocado por todos. A coisa continuava lá, magnifica, inominável. E ele adorava. Os demais correram, homens grandes a correr como meninos, exalando medo da coisa. É certo que o jornal da cidadezinha incobriu as estranhas mortes do alienista, o diretor do banco e do filho bastardo do prefeito da pequena cidade de Rios Turvos. Porém todos ouviram gritos na noite, e muito se comentava da pequena confraria que tinham entre si e dos encontros noturnos que tinham no velho monasterio franciscano no qual o bispo se hospedava quando vinha à pequena cidade. O próprio bispo celebrou a missa de caixão fechado dos três. Ele nunca fora tão bem em uma missa. O mês que passou na cidade foi marcado por pequenos sumiços na cidade. A coisa tinha fome. Terminou por comer o próprio clérigo. A coisa ainda vive pelo mosteiro, impedido de atravessar as portas. Ninguém mais se atreve a por os pés por lá.

terça-feira, junho 19, 2012

Espera - do arco "Breves histórias de assassinatos e coisas obscuras"

Esperava como quem espera por algo grandioso. Olhava pelas janelas imensas de vidro o céu nublado de um Recife em junho. Eram tempos de fogueiras. Ardia uma em sua mente. Pensava em tons vermelho-ouro do por-do-sol. Manteve-se calmo, tinha temperança de sobra para os males da vida. Olhava a chuva escorrer pelas janelas, o tempo levemente frio. Quando criança, aguardava anciso pelos pingos de chuva. Ria sozinho, admirava a chuva. Hoje iria matar um homem.

sábado, junho 16, 2012

Vazio

Havia lembrado de algo da sua infância, dessas coisas que ficam perdidas na memória até que algo acontece e isso vem a tona com toda força. Lera em um livro algo que o remetera aos livros que lia na infância. Fumava um cigarro de cravo, nem gostava tanto, e olhava a chuva contra a iluminação do poste. Era o cheiro de terra molhada. Sua máquina do tempo. Ficaria ainda dez minutos a olhar vazio a chuva contra a luz. O cigarro esquecido. Aguardando o fim do mundo.

quarta-feira, maio 23, 2012

Diários de Buenos Aires



O avião pousa, após momentos intermináveis de turbulência. Chove bastante, é verdade.

 

Procuramos a fila da imigração e só somos liberados após registro das digitais, identidade carimbada e foto para a imigração já depois da meia-noite. Empurro as malas, ansioso por fazer tantas coisas, mas com certeza dormir primeiro.

 

Chego em Buenos Aires nos últimos dias do outono. Perto do hotel no Soho folhas de três pontas despencam levemente das árvores e cobrem o chão da rua. 

 

 Acordamos tarde. O sol costuma acordar tarde também. Tomamos café no hotel. É o primeiro hotel que fico que toca rock como música ambiente. Juro que escutei AC/DC, Queen, Smiths, Beatles, Stones. Era muito divertido tentar adivinhar qual banda tocava baixinho toda vez que passávamos pelos seus corredores.

 

 Ficamos na enorme Palermo no soho, a poucos minutos de seus bosques. Passeamos pelo centro, percorrendo corredores e avenidas de lojas, cafés, livrarias, artistas de rua e restaurantes, tropeçando em brasileiros a cada 3 minutos e meio. Acolhedor. Convidativo. Rimos e nos enrolamos para nos comunicar, é tão engraçado que quase não incomoda as freqüentes investidas (educadas, digamos de passagem) das diversas pessoas que oferecem pacotes com shows de tango e jantares.

 

 Descubro que os hermanos adoram Beatles e que os punks são mais bem arrumados e aparentemente mais limpos do que os do Brasil. E mais importante, os mapas de lá funcionam. Caminhamos e damos de cara com protesto de trabalhadores, escoltados pelas tropas de choque. Nada que altere os olhares e o caminhar apressados das pessoas que percorrem o centro da cidade e passem ao lado sem se interessar muito pelo que acontece ao seu lado. 

 

 Pagamos um peso e vinte e cinco centavos no ônibus e percorremos o longo caminho que leva do centro de volta a Palermo Soho, passando por Belgrano. Olho pela janela do velho ônibus, que parece ter saído dos anos 60, e vejo a luz que ainda se infiltra pelas frestas dos prédios. São mais de 18h e o céu se degrada em vermelho, laranja e amarelo. Está mais frio. Acompanho o nome das ruas e traço o percurso no mapa que trago na outra mão. Olho pra ela e pergunto o que faremos a noite, enquanto o ônibus segue seu curso. Então ela diz:

 

 - Você não perde por esperar, rs.

sexta-feira, maio 11, 2012

Diários do Rio: Encontros


 

 

 

 

São coisas com as quais não deixo de me surpreender. Essas coisas que são levadas pelo vento, efêmeras.

Pães quentinhos, café, suco de laranja e bolo. Manhã de domingo levemente fria. Entre um gole e outro, rimos em uma pequena cafeteria de tijolos aparentes, em tons de marrom, baunilha e vermelho. Rimos porque o vapor do café embaça meus óculos quando bebo.

Conversamos sobre o que não reconhecemos de nós mesmos onde estamos. Falamos sobre choques de realidades sociais no Rio. Bebemos nosso café na Gávea, bela e arborizada. Favelas ao longe. Ostentação e necessidade. Bem que dá vontade, mas resisto em me sentir culpado pelas mazelas daqueles que na sua luta diária encontram as mais diversas formas de viver, sobreviver, amar.

Caminhamos pelos intrincados passeios do jardim botânico. Lembro-me de como achava que as plantas eram o ápice da perfeição. Fincadas na terra, erguendo-se ao sol, silenciosamente a moverem-se ao sabor do vento. Hoje não vejo muita diferença da terra que acolhe as raízes das palmeiras imperiais, que fazem fila indiana até o chafariz central, da terra e da poeira da Bahia antiga cantada por Vinícius, que na infância me eram constitutivas e que hoje se misturam com a terra do mangue pernambucano de Chico.

Caminho pelo jardim botânico e encontro com minhas próprias raízes.

No centro entramos em igrejas. Ela faz pedidos. Não sei o que fazer. É belo, não pela imensidão física, mas pela imensidão em si. Não consigo chegar muito perto da Candelária. Os sons de tiros antigos ainda ecoam muito alto. Fico muito desconfortável. Penso no homem da gravata florida de Jorge Benjor quase como um mantra enquanto me afasto de lá.

Não tive sorte com os espetáculos, realmente não vi uma peça. Aprendi sobre outras coisas. Continuo a aprender. Aprendo enquanto faço as malas para pegar o voo para Buenos Aires. Aprendo no caminho até o aeroporto. Irei continuar aprendendo com meus encontros comigo mesmo até chegar aonde, não sei.

 

segunda-feira, maio 07, 2012

Diários do Rio: Aprendizagem


 Passeio pela praia. Estou no Rio.

Bicicletas, árvores e corpos em constante tentativa de desnudar-se. Caminho pelas ruas e bairros de um Rio cantado e versado nas velhas bossas novas. Rio das opulentas ruas e shoppings e das favelas visíveis que circundam a cidade.

Mendigos e carros importados se cruzam diariamente, teatros e mais teatros. Penso nas peças que gostaria de ver. Talvez veja alguma. Tento me acostumar com o que encontro de diferente de mim pelas ruas. Artistas famosos sem maquiagem passam despercebidos pelas ruas, idosos e crianças tomam conta da Gávea no domingo de manhã.

Aprendo com a cidade e suas situações. Aprendi a trocar um pneu hoje. Aprendi que ficar calado no taxi ajuda a enganar o taxista para que ele não dê voltas desnecessárias para me levar a algum lugar. Aprendi que sorrisos são sorrisos em qualquer lugar e que na grande maioria das vezes são retribuídos.

Minha esposa compra sapatos. Compro livros. Conversamos e rimos no Rio. Combinamos de ir aos museus e assistir a alguma peça. Somos estrangeiros, em terras estrangeiras para nós.

Lembro constantemente de Um trem para as estrelas de Cazuza e Gil.

segunda-feira, abril 30, 2012

De partida


 

 Arquivo pessoal

Faço as malas. Vou partir e imagino o que verei e o que estarei por rever.

Não há espaço suficiente para o que levo na bagagem.

É tarde de domingo e sinto o fim do mormaço das 16h, sinto as pequenas gotas de suor em minha testa e imagino coisas bobas, situações bobas e as pessoas que encontrarei.

Estou de partida.

Parto também para minha velha terra, cuja poeira das tardes me é constitutiva. Caminho pelas ruas de paralelepípedo daquela cidadezinha em minha mente. Passo pelos bairros e pelas usinas. Percorro um passado com o qual não me identifico mais. Vou percorrê-las realmente em algum momento da minha viagem, mas serei um homem diferente a andar pelas ruas que percorria de bicicleta, pelas quais voltava da escola pra casa.

Escolho dois bons livros para levar, acomodo entre as camisas. Respiro fundo como se fosse mergulhar. Mergulho em lembranças ao escrever. Estou de partida. Levo livros, amores e amigos comigo. Sei que volto.

domingo, abril 22, 2012

21 de abril - Oito anos do Tardes Quentes de Outono



Pois é isso mesmo. Oito anos.
Escrevo a oito anos ininterruptos as mais diferentes coisas. Reflexões, diários perdidos, contos e histórias, na maioria e quase sempre sobre lembranças, das que já se foram às que ainda estão por chegar.
Estou longe dos 19 anos com os quais comecei a escrever, porém acabo por me aproximar um pouco mais dos meus próprios oito anos.
Oito anos de letras, palavras que não param de se multiplicar.
E hoje vejo que nesses oito anos, muitas dessas histórias não foram só endereçadas as mais diferentes pessoas e coisas, mas também a quem simplesmente quisesse lê-las. A quem acabava parando sem querer por aqui. Para mim também.
Até bem pouco tempo atrás eu não sabia o quanto e não me conhecia tanto, até ler alguns posts antigos, dos mais diversos dias desses oito anos. Conheci e me desconheci estrangeiro, órfão, inquisidor, engraçado, incoerente, cafona, contador de histórias por vezes.
Leio os contos que não recordo que escrevi e me divirto. Sou mais um estranho que caio por aqui, leio e esqueço do que li. As vezes sou você mesmo rs.
O melhor desses oito anos foi ter podido ter contato com as mais diversas figuras presentes e efêmeras que já passaram por aqui. Das que tive a oportunidade de conhecer em pessoa, das quais já conhecia e sempre estiveram por aqui, das que fiquei amigo e tenho a sorte de confrontar idéias, das que passaram pouco tempo e deixaram amizades e saudades, às que simplesmente passaram sem deixar vestígio por essas bandas.
Ainda continuo acreditando que as palavras trazem afeto, e afeto liga as pessoas. Obrigado a todos que tornaram e ainda tornam esse blog um lugar de afeto.
Obrigado a todos!

sexta-feira, março 16, 2012

O menino ou Pedaços de guardanapo


Continuo a escrever em pedaços de guardanapo. Fiquei sabendo que meu pai fazia o mesmo. Não sabia.
Meus guardanapos são das mesas de café, não dos bares como os seus. Não sou boêmio.
Tenho um pouco da alma e da vontade de transgressão boêmia. Não sou boêmio. Não como ele.
Vejo as pessoas presas no elevador panorâmico atrás de mim. Peixes num aquário, animais em exposição. Somos todos.
Escrevo em pedaços de guardanapo que numero com pequenos algarismos para delimitar as páginas.
Café e pão de queijo. Faço um calço com três saches de açúcar e ponho embaixo da mesa. Posso escrever enfim.
Que sou menino. Dizem. “Esse menino”. Dizem menino quando me apresento um homem. Falam do entusiasmo de quem começa quanto trago os calos de quem vem percorrendo longo caminho.
Olho no espelho e vejo a barba por fazer, algumas olheiras. Vejo o homem. É como se homem fosse o fato consumado, que definição engessada de si mesmo se chamasse homem. Sou um homem por fazer.
Futebol, cerveja, mecânica, matemática desculpem. Nada contra, mas estou mais a música, as contas, os cafés e a literatura.
Se sou menino, o sou quando me permito ser, quando o brincar de desenhar e escrever se traveste nas coisas sérias do cotidiano.
Mas que mentira. O menino me escapa. Ao homem escapa o menino, como se fosse mais treloso agora, depois de velho, do que quando era realmente menino.
Isso que me escapa ao escrever em pedaços de guardanapo à surpresa de saber que meu pai fazia o mesmo.
Sou um homem diferente dele. Gosto do homem que me tornei. Homenino em si mesmo.
Com letras e rabiscos nos pedaços de guardanapo da cafeteria. 

domingo, fevereiro 12, 2012

A Baba Yaga do Bairro Velho – do arco “personagens efêmeros do Recife Antigo”



Diziam que ela havia chegado junto com os holandeses. Era mais uma das estranhas a desembarcarem no porto da nova colônia holandesa. Russa, com certeza.
Provavelmente desembarcou pela noite, trazendo apenas um almofariz e uma vassoura de palha, ninguém falava com ela, mas comentavam de como uma mulher idosa como ela havia sobrevivido à viagem de navio.
De certo que ela sobreviveu e se adaptou aos primeiros anos na cidade Maurícea, devido à tolerância religiosa, onde já falava com forte sotaque. Pouco se sabe o que lhe aconteceu nos séculos que seguiram após a insurreição e a guerra dos mascates, mas sabe-se que sobreviveu.
Sua fama não era, e ainda é pouco, conhecida desse lado do oceano. Deixou para trás uma casa vedada por ossos, alicerçada sobre pés-de-galinha, de certo apodrecida e levada pelos séculos. Ela sobreviveu, as mudanças. Ela, seu pilão e sua vassoura. Acompanhou as mudanças dos séculos, as construções das pontes, os aterramentos, migrando de bairro em bairro. Usava o pilão não mais para voar, mas para bater paçocas de carne seca e a base das tapiocas.
Há quem diga que já a viu no Alto da Sé, mas é pouco provável, ela gostava mais do porto e raramente foi muito longe das pontes que levam ao marco zero.
Terminou seus dias vagando de casarão em casarão antigo a observar a decadência do Recife Antigo, quase sem falar mais seu idioma materno. Já não lembrava mais as palavras mágicas em Russo, e as ervas que usavam nas poções não se encontravam por aqui. Ficara louca, ela, que era uma das figuras mais poderosas do imaginário de suas terras, não lembrava mais o que a trouxera para esta terra quente, úmida, cheia de mangues e mosquitos.
Os últimos anos de sua estadia foram atestados por drogados e prostitutas que desapareciam pelos casarões. Ainda no fim do século passado fora vista uma única vez na lua cheia rindo dentro do almofariz voando pelas ruelas e apagando seus rastros com a vassoura de palha.
Se bem perguntarem sobre uma velha estranha com um pilão, provavelmente muitos não saberão dizer. O bairro está mais vazio a cada década, uma diáspora iniciada no século passado. Todos levados pelos bondes que não mais circulam.

domingo, fevereiro 05, 2012

O último dândi - do arco "personagens efémeros do Recife Antigo"


Trilha sonora: Blues da Piedade - Cazuza
Não era um dândi, mas era um dissidente do vulgar. Elegante com certeza, ao se destacar da grande diversidade de pessoas completamente diferentes a andar pelas ruas de paralelepípedos e rastros de bonde de séculos atrás.
Não tinha muito dinheiro, isso era verdade, mas ele vivia da própria fantasia que todos temos de ser aquilo que, enfim, não somos somente.
Respirava músicas de Cazuza, sendo o assassinato da flor seu mantra diário. Nas noites úmidas de diversos sons ele caminhava pelos becos e ruelas que levavam por fim a praça do arsenal, e há quem dissesse que já o vira de cartola e bengala. Talvez no carnaval, afinal os bares de radiolas-de-ficha do antigo bairro não eram convidativos para alguém nesses trajes, embora se vissem jovens de negro e alguns de sobretudo suando horrores nas noites quentes do bairro.
Não era uma figura folclórica do antigo bairro decadente de prédios e sinagogas recém-restauradas. Não era como o vendedor de flores de papel ou a velha dos cachorros. Era quase uma presença desencarnada, daquelas que se percebem de relance quando se olha sem querer para o lado.
O último dos dândis em uma época em que a imagem pesa mais do que o conteúdo, em que o belo fere àquele que dele não deveria sentir uma única falta, onde as pessoas andam com espelhos à face, olhando em todas as direções.
Há quem diga que o já viu tomando uma cerveja em frente ao antigo Cabaret, ou que já o viu ter o braço carimbado para entrar nas antigas festas que tocavam músicas dos anos 80 na velha panquequeria após a maia-noite, ou que já o vira sentado defronte para o monumento fálico do cais, cantado Blues da Piedade enquanto esperava pelas cinco horas da manhã para pegar a condução para casa.
Mas já faz muito tempo. Tempo da morte da velha dos cachorros e da grande maioria das figuras imaginárias que povoavam as ruas que hoje só ficam cheias nas feiras de domingo. Dizem que era uma mulher, que de perto não tinha como se confundir, mas na verdade ninguém dá à mínima, como não damos a mínima praquilo que não nos faz falta.
A noite chega, os casarões fecham suas portas. Fiteiros e pessoas na rua. De longe o som de uma ou duas alfaias. Chão de paralelepípedos com trilhos de bondes que não circulam a muitas décadas. Levaram todos.

sábado, janeiro 28, 2012

Cafuné ou Escuto a música de uma nave que se aproxima


O fato é que ando fazendo novas ilustrações e voltei a ter vontade de mexer no Photoshop. Não que eu tenha habilidade com cores, luz e sombras, mas que tem me dado vontade de brincar com algo além do preto e branco, ah isso tem.

Após uma semana de perdas tive o grande presente de estar reunido com amigos e seus cachorros no sábado. É ótimo ter amigos artistas, compadre e comadre então nem se fala. Tarde colorida, chuva só no finalzinho, clima agradável, grama, crianças e cachorros.

Levei um cachorro invisível, só eu podia vê-lo. Ficou brincando por lá, cheirando os outros cachorros sem eles perceberem. Ah danado! Voltou comigo no carro sem problemas.

Falei com Lula que andava com vontade de desenhar novamente e que pensei em fazer alguma brincadeira com as músicas da banda dele: A nave




Banda bacana, com músicos extraordinários. As músicas então... cotidiano real, nossas vidas. Do pancadão ao passeio pela praia com o cachorro Oscar.

Pra terminar esse post de agradecimento pela ótima tarde de sábado, uma música dA Nave (é só apertar play).




 

Você pode encontrar A Nave em: anavemusica.com.br/
Download do EP Clicando Aqui

quarta-feira, janeiro 18, 2012

Irmãos em linha reta

Arquivo Pessoal

Trilha Sonora: Mother Goose - Jethro Tull

Estou dirigindo pela avenida em linha reta. Escuto Jethro Tull e Joan Baez com meu irmão ao lado.
Pergunto quando vamos montar finalmente a Blues Brothers Company para tocar-mos versões do Jethro Tull e violão e flauta transversal somente, então ele ri e diz que eu é que não chamo pra ensaiar.
Janelas abertas, o vento bate enquanto conversamos sobre sobreposições musicais em harmonia. Rimos de nós mesmos, como se não nos víssemos há muito tempo. Realmente não nos vemos a tempo. Não vivemos mais no passado.
Somos irmãos, estrangeiros em uma cidade que nos acolheu e nos ensinou muito, ainda ensina. Acelero o carro em linha reta, escutamos Mother Goose, Boureé, Locomotive Breath, The Whistler.
Conversamos digressões em cima de digressões, como se a vida não fosse feita de bifurcações de bifurcações anteriores. Digo pra ele ter cuidado quando for trabalhar de bicicleta. Ele conta sobre os banhos de lama que já tomou dos carros em dias de chuva. Eu rio.
Estou lhe dando uma carona para casa, ele me dá aulas de folk music. Logo estamos falando das intemperanças das nossas histórias, dando voltas nessa coisa que tende a se repetir, nesse eterno retorno do que se perde nas entrelinhas das histórias de todos nós.
Chegamos, apertamos as mãos e recebo um obrigado.
Ensaio marcado nesse sábado.

terça-feira, janeiro 03, 2012

A menina e a mariposa*


Arquivo pessoal



Ela continua com medo de mariposas... mariposas enormes e apavorantes... talvez as mesmas mariposas que a perseguiam quando criança... mariposas que entram pela janela do seu quarto.
Ela ri ao contar isso... já não é a menina que corria das mariposas...
As mariposas, hoje, assumem outras formas...
Trovões, trovões... nenhuma chuva vem... isso é normal? Os trovões não me metem tanto medo assim... mais medo dão as expectativas que ela tem.
E nessa brincadeira de seguir em frente, ela encontra suas mariposas... quando sai o resultado do vestibular?... e nesse carnaval?... fantasia-se de pierrot ou arlequim?
Bobagens, isso é só parar rir. Imagine-a fantasiada, com certeza seria engraçado, engraçado como seus trocadilhos e sarcasmos difíceis de entender, que ela, vez por outra, tem de explicar e acaba por ficar mais engraçado do que se fosse entendido.
Uma pílulazinha aqui pra melhorar o humor, outra ali para que seu corpo funcione direitinho... lamenta-se por não poder doar sangue e disserta uma breve aula sobre fatores Rh e eritroblastoses fetais... quem não se divertiria com essa pequena aula de biologia?
Ela o encontra, fala com ele, sobre ele, diz o que sente para ele... e aos poucos vai percebendo que harmonia não consiste em uma estabilidade imutável, mas sim numa instabilidade que se auto-organiza... e ela aprende mais sobre si e sobre ele... porque tudo o que ela passa serve de aprendizado, embora, algumas vezes, ela não perceba.
Aprendizado para o futuro. Para no futuro voltar a ver e dizer o que sente ao primeiro homem que a beijou e lhe pegou nos braços... para, no futuro, lembrar das mariposas que entravam pela sua janela. Mas, por enquanto, ainda é futuro.
No presente ela toma café com sua mãe otimista, que leva a vida entre bombardeios de filosofias e assuntos vestibulares... conversando com ela e vivendo pequenos momentos ao lado dela, que vez por outra, esquece como é especial. O cotidiano nos prega essas peças mesmo.
Ela me contou uma vez que tinha medo de mariposas, e eu ria.
Uma das últimas mariposas que a perseguiu estava tentando tomar suas palavras, e ela tinha medo de não poder escrever mais. Mas mariposas não podem roubar palavras. Talvez ela tenha roubado um pouco de sua visão, agora que olhava as palavras que escrevia e que não mais gostava. Mas os olhos que se deve usar nesse caso são outros...
Ela, talvez, tenha cobranças demais, por parte dela, por parte dos outros. Vi num documentário que as mariposas sentem o cheiro das cobranças, porém no mesmo documentário falava das compreensões das mariposas. Dizem que as mais assustadoras são as mais compreensíveis.
Que surpresa seria quando a mariposa novamente entrasse pela janela do seu quarto e ela dissesse: “Você me mata de medo mariposa! Por que você faz isso?” e a mariposa retrucasse: “Me desculpe. Eu não sabia que você se sentia assim. Na verdade você nunca tinha dito nada, só saía correndo quando eu a encontrava”.
“Então você não vai me fazer mal?”.
“Não, de forma alguma. Nunca foi minha intenção”.
Que surpresa seria encontrá-la na cozinha, tomando café e conversando.
E, ao final da conversa, a mariposa a perguntar se poderia visitá-la novamente, enquanto ela, meio receosa: “Tudo bem... só avisa antes da próxima vez, ta? Ah, sim! E pode usar a porta da frente”.

*Texto de 2006, publicado no antigo Tardes Quentes de Outono
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