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Ela era uma gata velha. Preta com
peito branco. Tinha o mérito de ser sobrevivente numa cidade cheia de carros,
diversas ninhadas paridas e deixadas à própria sorte como ela mesma já fora um
dia.
Contava com a experiência de um
animal que já se encontrava em sua quinta vida, não seria mais tão descuidada
ou confiante como fora nas duas primeiras.
A conheci em um abril de chuva. Tinha
ares de uma felina de grande porte, rainha da cidade de concreto. Acampara uma
temporada em meu quintal, período no qual travamos um relacionamento
minimamente amistoso. Eu era para ela um
filhote de homem curioso e fácil de lidar (fato do qual soube tirar todo o proveito
para sua sobrevivência naquela época).
Dizia-me que não acreditava em
Deuses, e achava estranho que alguns animais (como eu) só tivessem apenas uma
única oportunidade de viver aqui. Desdenhava dos outros gatos antes de sumir em
alguma sombra. Ela disse que só em sua terceira vida aprendeu a usar as
passagens que davam em lugares distantes, porém eram difíceis de serem encontradas. Eu tinha sorte de ter uma delas na sombra da árvore
do quintal.
Ela nunca falava das suas duas
primeiras vidas, só com certo sarcasmo e humor das demais. Acho que ela gostava
de mim, às vezes dizia que eu bem que poderia ter sido um bom filhote, mas que
ela não tinha a mínima vocação para ser mãe.
Conversávamos horas às vezes. Eu sentado,
de galochas, à soleira da porta enquanto ela se acomodava ao lado da árvore,
protegida da chuva com suas orelhas rasgadas a me fitar. Quando adoeci ela veio
todos os dias à janela do meu quarto, mas não dizia mais nada.
No trigésimo quarto dia de sua
estada no meu quintal eu soube que ela iria embora. Na verdade já sentia isso a
um bom tempo, talvez ela estivesse sem jeito para dizer, mas não era isso. Ela
simplesmente disse que estava de partida. Nem olhou pra trás enquanto caminhava
para a sombra que a árvore fazia às três horas da tarde e que apontava sempre
para o leste.
Nem me atrevi a perguntar se a
veria de novo, nem pude correr até ela por causa da chuva. Só pedira, antes de
entrar nas sombras, que não arrancasse a árvore.
Sumiu então. Nunca mais a vi.
Nos anos que seguiram até mudar
de lá, tive diversos visitantes em busca daquela mesma árvore em meu quintal. Alguns
amistosos, outros intratáveis.
Um dos últimos que encontrei era
bastante comunicativo, jovem ainda em sua segunda vida. Dissera-me que os gatos
e alguns outros animais e seres podiam atravessas certos lugares que serviam de
portais para eles. Os melhores eram os das casas velhas, mas geralmente eram
usados por espíritos e outras criaturas pouco amigáveis. Disse que eu tinha
sorte de ter um bem no meu quintal, e era uma pena que eu não pudesse usá-lo.
Antes de ir, perguntei por uma
gata preta, surrada. Disse que era uma pessoa querida pra mim. Ele, muito prestativo,
disse que a vira uma única vez de relance, enquanto conversava com outro gato.
Disse-me que era uma bela senhora,
porém meio estranha. Jurava que havia escutado ela dizer ao outro gato que
havia encontrado um de seus primeiros filhotes, que havia perdido muitas vidas
atrás. Um filhote-menino.