quinta-feira, agosto 19, 2010

Lendas de família ou As árvores.


As árvores sempre me têm histórias para contar, sempre que passo por aquela ruela, que cruza a universidade católica. Quanta sabedoria. Demorei anos para compreendê-las.

Uma delas disse que meu pinheiro mandou lembranças.

Na minha antiga casa, tinha um pinheiro no quintal de concreto, o qual cumpria as funções de árvore de natal durante as festividades e casa de pássaros no resto do ano.

Em casa havia a lenda de que se o pinheiro passasse da altura do cume da casa, alguém nela morreria. Se era verdade ou não, o fato era que papai sempre deixava o pinheiro um metro abaixo do cume da casa.

Eu ainda não entendia o que elas falavam nessa época. Não chegavam a ser palavras e eram jogadas ao sabor do vento como pólen.

Elas também tinham suas próprias lendas sobre nós, mas isso elas não contavam. Algumas delas serviam como portais para certos lugares e muitas vezes, à noite ou em locais desertos, algumas coisas as atravessavam para o lado de cá.

Antigamente, na época do avô do meu avô, eram mais freqüentes essas coisas acontecerem. Eles não se davam muita importância, embora soubessem da existência um do outro.

Quando garoto, meu avô achava estranho que seu pai sempre deixasse um pacote de rolo de fumo na soleira da casa a cada lua cheia que fosse precedida pela chuva. Sempre que isso acontecia, ele ficava acordado até de madrugada, escondido, para ver da janela o estranho que sempre aparecia para pegar o fumo.

Parecia ser um senhor muito baixo, quase da sua altura, usava um chapéu de abas largas e roupas humildes, sempre trazendo um cachimbo longo do qual saia uma fumaça que tomava tons de roxo ao luar.

Por causa da lua cheia o terraço ficava bem claro e meu avô podia jurar que o velho misterioso tinha pelos, pelo menos sua barba era tão grande que lhe caia sobre o peito, fora o dorso das mãos e dos pés peludos.

Ele contava que, após o velho pegar o fumo, dava uma longa baforada no cachimbo e gritava: Boa Sorte!

Gritar era forma de dizer, na verdade ele gritava sem gritar, e o timbre de sua voz, meu avô contava que nunca tinha ouvido nada parecido. Dizia que a única vez que questionou seu pai sobre o motivo que o fazia deixar o fumo, este simplesmente se resumiu a dizer que era por causa da boa sorte.

Era a época em que as simpatias do interior funcionavam. Ele contava que podíamos passar nossas doenças para alguns animais, que foi assim que sua avó tinha se curado da tuberculose, em uma noite de mormaço em agosto com a lua minguante. Seu pai tinha pescado um peixe e o soltara no rio logo após ela escarrar em sua boca.

Era tudo verdade, dizia ele. Algumas das árvores confirmavam, outras desconfiavam.

Ainda passo pelo meu antigo bairro de casas quase centenárias, hoje sendo engolida pelos prédios cada vez mais altos. Vejo meu pinheiro se erguer por detrás do muro amarelo, muitos metros acima do cume da casa.

Pergunto-me se era verdade o que meu pai contava, ou se fora mera coincidência. A verdade é que não teria coragem de perguntar isso diretamente ao pinheiro.

Parado, lhe dou um adeus silencioso e logo estou dobrando a esquina.

segunda-feira, agosto 09, 2010

Resenha: Dublinenses – James Joyce


Depois de começar a ler as primeiras páginas de Ulysses, desisti e resolvi tentar ler James Joyce de forma cronológica.
Dublinenses me foi um espanto do primeiro ao último dos seus quinze contos. Dos textos curtos de histórias, que nada mais eram, do que pedaços do cotidiano dos moradores da Dublin do início do século XX, que começavam sem dar muita referência de seus personagens e terminavam por deixar mais curiosidades do que certezas sobre o que acabara de ocorrer, encontrei com elementos meus próprios, que de vez em quando teimam e permanecer nos textos do Tardes Quentes.
As lembranças da infância, as reflexões, o frio das noites de Dublin vinham até mim muitas vezes pelas noites de ventos frios e das chuvas de julho. Joyce apresenta personagens reais, desvelando os desejos e segredos destes, indo do desejo desesperado em asfixiar o filho contra o peito, os segredos das relações conjugais até o confronto com a lembrança de um amor perdido de sua esposa que o faria refletir sobre a própria passagem do tempo e do sentindo das palavras ditas nas festas natalinas.
Um livro que me deu saudade assim que terminei de ler sua última frase. Dera-me saudades de mim também, ou mais especificamente das histórias que trago comigo.
Dublinenses é aquele tipo de livro para se ler como quem come um pedaço de chocolate, sentindo o sabor aos poucos porque não se quer terminar. Pode ser até mal digerido. Mas, com certeza, se quererá mais um outro pedaço depois.

sexta-feira, agosto 06, 2010

Lembranças de Hiroshima


De vez em quando o vento trás os ecos dos gritos. A brisa quente que chega furtiva pelo Pacífico e Atlântico, às vezes, parece trazer o calor atômico de 65 anos atrás.

Tenho lembranças de Hiroshima. Lembranças vindas de ecos que já perderam o som.

O segundo bigbang que dá origem a nossa era data de 65 anos, o flagelo da ultima Grande Guerra. Calor e fúria. Silêncio no final. Após 1945 nascemos meio natimortos.

Tenho lembranças de Hiroshima, das crianças indo para escola, das milhares de pessoas indo para o trabalho antes do silêncio, antes da primeira rajada de vento quente. Antes da morte instantânea de 78 mil pessoas. Antes do som voltar em um amálgama de berros, choros, gritos e desespero.

Prédios e vísceras no chão. Lembro de Einstein citar Gandhi.

Vejo fotos anônimas e imagino as milhares de pessoas que ainda não sabiam que estavam mortas, após a queda da bomba atômica.

Lembro do pavor da constatação de que se poderiam matar milhares em segundos. Os cogumelos que encontrava no quintal nunca foram mais os mesmos.

O vento frio que vem da chuva, que bate na minha varanda, leva os pensamentos pra longe. A paisagem se transforma e tudo volta a nascer. Prédios cada vez mais altos. Pessoas cada vez mais apresadas.

Vovô, quando vivo, falava que o tempo a tudo curava. Talvez.

Menos minhas lembranças de Hiroshima.


(Em memória aos mortos e sobreviventes da bomba atômica de Hiroshima)


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(Hiroshima antes da bomba) (Hiroshima após o bombardeio)


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