quinta-feira, maio 30, 2013

A maçã




Minha avó contava que há muitos anos, sua velha, velha avó lhe contou uma história sobre a maçã.
- A maçã, dizia ela, tinha sido tirada do peito de um menino da vila. Ele ficara oco. Crescera oco.
- Fora roubado, ainda no berço, como fora profetizado pelos mais velhos. A maçã fora levada pelo corpo seco, não se sabia para onde.
A maçã brilhava como o sol, o último fruto dos deuses que estavam morrendo naquela época. O pomo da discórdia que tapava a última armila daquela época, um último vórtice, se fora para sempre.
Junto com a maçã fora levada a vida da aldeia. A criança com a maçã no peito era a primeira a nascer nas últimas décadas. A vila caíra em trevas, como em trevas ficara o peito aberto do menino.
Vovó tinha a pele cinza, e me contava a história do alto de sua cadeira de balanço, enquanto, sentado aos seus pés imaginava o menino. Ela contara do declínio da esperança de uma aldeia que era absorvida pelo buraco negro no peito da criança.
Como tudo eram trevas, não havia como fugir da vila, sem voltar para o centro e ser sugado pelo buraco faminto.
Sua avó foi a única a fugir, usando um pedaço de vela da babilônia, procurando abrigo em uma terra muito diferente da sua, com uma língua que ela custou a aprender.
Sua pele era cinza, como a da minha avó. Como a minha própria pele.
A história ainda não explicava porque nossa pele era cinza, mas, quando a avó calava e fechava os olhos, sabia que não teria mais nada dela.
Então eu calava também.

domingo, maio 19, 2013

A legião Estrangeira – Ensaio




“O pinto, esse piava. Sobre a mesa envernizada ele não ousava um passo, um movimento, ele piava pra dentro. Eu não sabia como cabia tanto terror numa coisa que era só penas. [...] Era impossível dar-lhe a palavra asseguradora que o fizesse não ter medo, consolar coisa que por ter nascido se espanta. [...] ”

“[...] Mas era amar o nosso amor querer que o pinto fosse feliz somente porque o amávamos. Eu sabia também que só mãe resolve o nascimento, e o nosso amor era de quem se compraz em amar: eu me revolvia na graça de me ser dado amar, sinos, sinos repicavam porque sei adorar. Mas o pinto tremia, coisa de terror, não de beleza.
O menino menor não suportou mais:
- Você quer ser a mãe dele?
Eu disse que sim, em sobressalto.”


(Lispector, Clarice in: A Legião Estrangeira. Ed. ROCCO, p. 97)

sexta-feira, maio 17, 2013

Dias de Trovão





Eram dias de trovão. Tocava em seu carro uma velha fita k7 com músicas do Belle e Sebastian de um lado e do SteppenWolf do outro.
Cruzava a cidade, com um velho amplificador na mala e o case da guitarra no banco de trás. Um On the Road tupiniquim. Estava fugindo de casa, um pouco tarde para sua idade. Fugia só.
Ele sabia que as bombas cairiam em poucos anos, que deveria rumar país adentro, que não era seguro estar no litoral quando as ondas encobrissem as primeiras cidades costeiras.
Olhava as pessoas andando distraídas, ocupadas em seu cotidiano, ao passar pelas pequenas cidades, menores do que muitos bairros da sua própria cidade.
Eram dias de trovão e ele sabia que anunciavam a catástrofe iminente. Sua viagem já ia em 3 anos quando não teve mais de onde tirar dinheiro para seguir de carro. Estava só e não tinha como recorrer à família, que o havia procurado por meses, e que ainda passara um ano esperando algum contato de algum possível sequestrador após as buscas da polícia terminarem.
Dois anos após, encontrava-se vagando descalço, com os jeans rasgados tentando escapar dos trovões e da chuva que o seguiam durante esses anos, sem deixa-lo ver por mais do que poucos dias o sol. Às vezes sentia-se culpado pelas catástrofes, causada pelas chuvas, das cidades pelas quais passara, só às vezes.
De repente sentiu saudade de casa e resolveu voltar. Seu carro apodrecera em ferrugem e mofo, deixado sem gasolina junto com o case vazio e um amplificar queimado em uma beira de estrada, longe da rodovia à muitos anos.
Usava um saco de lixo preto no corpo pra proteger os trapos da chuva e do frio. Estava voltando pra casa. Se perguntava, como quem lembrava de algo perdido na infância:
– Quem é que ira lançar as bombas mesmo? Lembro de um cogumelo de fumaça.
Parava um transeunte segurando-o forte pelo braço, a olhar o desespero do mesmo como se fosse um assalto, e perguntava:
- Filho, você viu a previsão de hoje? Falaram das ondas? Onde fica o litoral?
Sete anos após chegou ao Recife. Magro, a barba em seu peito, um novo saco de lixo preto, que trajava com uma elegância que ninguém percebia.
Esperou um bonde que já se encontrava atrasado à décadas e saiu, a pé, escarnecendo a cidade por não estar preparadas  para as...
- Para o que mesmo? Tinha a ver com um cogumelo e ondas. Champignon? As ondas da praia de Boa Viagem?
Coçou a barba. Na verdade não parava de coçá-la. Foi ao marco zero. Chovia torrencialmente, como não chovia em anos, com raios e trovões.
As águas do cais estavam revoltas quando chegou. Então viu o que parecia ser um cogumelo, grande demais para o seu gosto, e por trás dele as ondas a baterem no quebra-mar.
Pegou a primeira balsa de madeira, ignorando os gritos do barqueiro que levava turistas ao quebra-mar parar visitar as esculturas do Brennad, e navegou por longos minutos sob forte chuva até conseguir subir pelas pedras e abandonar a embarcação à deriva.
Sentia as ondas baterem no quebra-mar e o molharem mais do que a própria chuva. Olhou o monumento fálico sob o céu plúmbeo. Ondas e mais ondas a baterem nas pedras.
Juntou-se ao mar.
           

quarta-feira, maio 08, 2013

Estudo em outubro




“ERA A VEZ DE OUTUBRO, POR ISSO FAZIA FRIO NAQUELA NOITE E AS FOLHAS estavam vermelhas e alaranjadas e caiam das árvores que circundavam a clareira. Os doze estavam sentados ao redor de uma fogueira, assando enormes linguiças espetadas em varetas – que estalavam e estouravam ao pingar gordura nos ramos incandescentes de macieira – e tomando sidra fresca, que lhes enchia a boca com seu gosto agridoce [...]”

“[...] – Tudo bem – Conciliou Outubro. Sua barba era multicolorida, um bosque no outono, marrom-escura, laranja como o fogo e vermelha como o vinho, um emaranhado de fios na parte de baixo do seu rosto. Suas bochechas eram rubras como maçãs. Ele parecia um amigo, alguém que você conhece há uma vida. – Setembro pode falar primeiro. Vamos começar [...]”

(Gaiman in: Coisas Frágeis. Tradução de Micheli de Aguiar Vartuni. Ed. CONRAD, p. 35 e 36)



Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Quem procura...