quinta-feira, abril 30, 2015

A fome



Fumo outro cigarro.
Olho as nuvens, passando esparsas no céu estrelado de um quarto crescente.
Sopro desejos pelos tragos do cigarro. Cosmonauta, preso ao chão, à sentir saudade de ver a terra do espaço.
A fome, a rondar as ruas desertas das madrugadas, à escuta dos sussurros.
Vejo o mundo, do alto do terceiro andar. Escuto o lamento noturno dos viúvos, ensurdecedoramente silencioso na madrugada.
Sopro nuvens, me atirando do parapeito noite após noite.
A fome ronda o quarteirão. Olho para ela, iluminado pela brasa do cigarro a acabo de acender.
No coração das trevas, a fome.
Há fome.
 

sexta-feira, abril 24, 2015

Da menina


Descobre o peito 
Pinta a boca e beija o espelho
Que reflete a silhueta que você acabou de descobrir
Perfuma a nuca,
Perfuma o pulso,
Sente o seu perfume
 E sai de salto por aí


(Tulipa Ruiz)

quarta-feira, abril 22, 2015

Baú de ossos



Olho a chuva pela janela do consultório. As copas das árvores revoltas, dançando. Barulhos de carros ao longe.
Fico a olhar, deixando a claridade entrar na sala escura, iluminada pelo abajur de luz amarela. Sou um baú de ossos e segredos. Dos segredos dos outros, pois os meus já não se fazem obscuros para mim.
A silhueta negra de um gigante, à olhar a rua pela janela da sala, como uma estátua de granito. Vejo a mim como um outro, que olha a si como a um outro. Procuro meus óculos no bolso interno do blaser, só para lembrar que os deixei.
Óculos de brinquedo, que uso pra me proteger dos olhares. Não passo de um semblante para os olhares, que vêem tudo, menos a mim.
Passo a mão nos cabelos desgrenhados, lembrando histórias de livros, lendas e profecias. Lembro de também correr na chuva. Entrei num café uma vez, estava com frio, ensopado, com medo. Perdi meu allstar na chuva. Fui levado por elas muitas vezes. Voltei de algumas.
Poderia contar diversas histórias antigas como se eu mesmo as tivesse vivido repetidas vezes, as que vivi, poucas vezes as contei. Escrevo mentiras verdadeiras, teço tramas que irão me prender mais a diante. Eu profecio tormentas.
E no final sempre estou a olhar a chuva, na busca de algo perdido, que encontro no cheiro da terra molhada.
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