sexta-feira, agosto 28, 2009

O peixe-boi e o poço




Enquanto voltava pra casa, bem depois da hora do rush, quando as luzes amarelas dos postes antigos ganham destaque após a profusão de faróis e pessoas das 18 horas, me vi pensando no peixe-boi do poço.

A praça resistia ao tempo, com as velhas palmeiras imperiais de sempre, os balanços vazios e os poucos mendigos que se recolhiam nos bancos ou molhavam o rosto na fonte. Eu não conseguia me lembrar onde ficava o poço, nem se fora destruído com o tempo. Quando garoto, em minhas férias, costumava ir até lá, ver a atração que cativava os adultos e crianças: o peixe-boi que morava no poço. Não sabia como ele havia parado lá, mas me lembro bem de seu rosto pra fora da água escura e imunda, coberta de pipoca e restos de comida que adultos e crianças jogavam.

E lá ficava ele a rodar eternamente naquele poço minúsculo, que mal o devia caber, dando longos mergulhos talvez para fugir da gritaria e do barulho da praça. Ele já estava corcunda, devido aos anos preso ao poço, sem poder se movimentar direito. Lembro da pele escura e dos olhos escuro dele, mal devia saber o que acontecia, mal devíamos sentir o que o acontecia.

As luzes cortavam as janelas do ônibus, que começava a se afastar do terminal da praça, onde a noite tomava de assalto cada centímetro de espaço existente. Lá estava eu a olhar, procurando o poço na praça que se afastava cada vez mais da visão, juntando-se ao montante de elemento daquele bairro.

Onde estaria a nadar o velho animal que um dia olhou com seus olhos negros para aquele menino, que como qualquer menino sentia medo e curiosidade a respeito daquela enorme coisa viva?

Tentava afastar o pensamento dele, enquanto abria um livro e tentava me envolver na história, mas só mergulhava mais nas águas daquele poço, cada vez mais fundo na água escura.

O poço não tinha fim.



2 comentários:

Vivianne Mello disse...

Por vezes tentamos nos distrair... pensar em outros assuntos e a fuga acaba nos aproximando mais e mais. E de repente as memórias ganham vida e vemos elementos do passado ali.. diante de nós. Post excelente!

Luana Andrade disse...

Negligenciar uma memória é aproximar-se... Adoro estas descrições DW: eu posso sentir a brisa do parque, ouvir os ruídos infantis e também me intrigar com o olhar tão escuro da criatura meio distante. Você resgatou o momento e ainda se indagou com o destino. Muito sensível... Incrível post. E realmente espero que este seu "poço" de memórias não desmorone. Beijos meu amigo.

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