domingo, julho 24, 2011

Cap II: De uma madrugada inteira à luz de velas e a busca pelas lembranças perdidas


 
Folheava as páginas à luz do lampião de gás. Sua casa na vila dos operários ainda não possuía luz elétrica, mas ele não ligava muito. Passou quase a noite toda a ler o livro em português antigo. Era fim-de-semana, ninguém o incomodaria, não recebia visitas de ninguém, fora os dias de trabalho.
Procurava nas entrelinhas do livro coisas sobre si. Não havia familiares para tal função. A sua mãe morrera ainda cedo, seu pai no fim da era das grandes construções das barragens da vila, antes de lhe ensinar tudo sobre o oficio que hoje era seu. As vezes tinha impressão de que todos eram escravos das grandes construções, como se vivessem somente para alimentar os maquinários das usinas, sedentas de calor, água e óleo.

Havia um capítulo  que contava a historia dos primeiro habitantes da vila, índios. Mortos décadas após a chegada dos colonizadores. A água turva da vila era consequência da morte deles e os poucos descendentes miscigenados eram vistos como mau agouro. Sua avó era descendente direta da água turva hoje represada. Nas noites quentes de agosto ela contava história sobre deuses da floresta e da água. Como poderia ter esquecido? Quantas lembranças haviam adormecidas em si, após longos anos de trabalho sem nenhum questionamento? Quantas haveriam de surgir, linha após linha, daquele livro dos segredos?
Fez um cigarro e acendeu. Mente vazia. Sentou-se no banco à porta da casa de alvenaria no bairro dos operários. O lampião da porta já fraco pela luminosidade que anunciava o novo dia. Mente vazia, atenção voltada apenas para os círculos de fumaça a saírem do cigarro de palha.

Havia um mapa antigo da vila, que continha a área dos paredões rochosos que protegiam o rio turvo. A parte proibida da vila. Pela primeira vez sentia algo expandir-se dentro de si, um comichão que se transformava em uma agonia silenciosa. Seu corpo adormecido pela falta de expectativas tremia.  O coração de operário começava a bater fora do compasso das engrenagens.

Alguns chegaram a ouvir alguém descer o bairro ofegante as cinco horas da manhã. Se perguntassem a eles quem poderia ser, com certeza não saberiam, mas diriam que parecia desespero. Os passos foram ouvidos por toda a extensão da rua naquela madrugada, deixando para trás uma pequena casa de alvenaria com um cigarro a queimar no banco e um lampião prestes a apagar.

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