segunda-feira, março 29, 2010

Espelhos e Cafés


Olho para mim, através do espelho horizontal colado à parede do pequeno café. O tilintar das xícaras, postas na máquina pelos baristas, misturam-se com as pontas revoltas dos meus cabelos ao olhar o espelho.

Os cafés, para mim, sempre foram as ante-salas, as salas de espera para os encontros comigo mesmo.

O outro do espelho escreve pequenas anotações no guardanapo de papel. Penso que ele deva estar a escrever algo mais interessante. Ele realmente precisa cortar aqueles cabelos e fazer a barba.

Tento ler minha sorte na xícara vazia de café, nada que vá além das contas para pagar e das pequenas grandes descobertas que desnudam a realidade da qual não me apercebo.

Ele escreve sem parar, quase que em transe, quase que rasgando os guardanapos, de tão rápido que escreve.

Olho para o espelho e o vejo concentrado, escrevendo como se não precisa-se parar para pensar no que escreve, juntando palavras, pontuações, vírgulas e mais vírgulas, sem precisar fazer sentido, como se o próprio ato de escrever fosse substituto para o curso do seu pensamento agora vazio.

Já eu, em minha observação, me prendia entre o cheiro dos croissants e dos cafés, e as pessoas que transitavam entre as pequenas mesas de duas cadeiras que enchiam o pequeno espaço.

Cheiro de azeite. Eu quase me perco o sentir o gosto trazido pelo cheiro. Me perco olhando o vazio, imaginando cidades de azeite, com árvores-oliveiras, rios oleosos, entre o verde-oliva, e o cheiro.

E de repente estou novamente no café, escrevendo a terceira folha de guardanapo. Olho para o espelho e vejo-me a me olhar escrevendo sem parar, como se houvesse um delay tão enorme na reflexão da luz do espelho, que o fizesse um anteparo entre presente e passado. E já não sei se sou o presente, a recomeçar o escrever de onde parei no espelho, ou o ato atrasado da imagem refletida anteriormente na superfície polida ao meu lado.

Junto as folhas espalhadas pela mesa e as guardo numeradas dentro de um livro da Anne Rice, que uso como suporte para escrever, na esperança de que fiquem esticadas e não rasguem.

Tiro umas moedas do bolso e pago meu café. Olho a pequena mesa ao sair, ao lado do espelho que corta uma ponta a outra da parede que é uma mistura de tons de creme, e o vejo sentado a me encarar. Barba por fazer, cabelos rebeldes.

Em sua mesa, muito mais papéis espalhados dos que levo numerados em meu livro. Em seu olhar nenhum sinal de que vá embora tão cedo.

4 comentários:

Juh S. disse...

cafés são meio mágicos..
aqui em são paulo tem a pinacoteca, que tem uma área de café que dá para o parque da luz...
NOssa como é gostoso estar lá, outra atmosfera.

E a confusão mental de alguns as vezes precisa ser enfrentada, como esse alguém devia estar fazendo.

Vivianne disse...

Seu blog fabuloso como sempre.
Seus escritos me transpostam para um muito acolhedor... e creio que isso ocorra devido a identificação que surge a cada palavra lida.
Se faz sol... não importa... toda vez que passo por aqui me sinto em um dia nublado de outono.

Eduardo disse...

Juh: Um dos cafés que gostei de SP foi o do MASP, que fica no subsolo do prédio. Achei ele diferente dos cafés que costumo andar.
Confusão mental é mesmo uma confusão, não é?

Viviane: O outono chegou não foi? Tomara que ele traga mais paz de espírito e acontecimentos mais amenos. Não sei se havia dito isso antes, mas seu blog me lembra muito o início do Tardes Quentes de Outono. =]

Luana Andrade disse...

Olá DW,
É com prazer que leio estas linhas belas de entendimento intrínseco somente por quem também conhece a arte da "fragmentação" reflexiva. As percepções de si mesmo, os monólogos, o olhar dos reflexos nesta superfície espelhada, tão longínqua, tão poética... Ora transparente, ora obscura. Ofuscada pelos sentidos, aroma do café. É uma áurea deliciosa de acompanhar, me identificar com as minúcias. Magnífica sensibilidade, outrora eu disse. Reitero
Abraços meu amigo, para ti e seu reflexo.

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